quarta-feira, 23 de julho de 2008

45.A derrota do vilão, a vitória do herói (6)

Gostaria de vos anunciar a derrota do vilão e a vitória do herói, de dar-vos essa esperança e essa certeza. Gostaria de vos prometer que o vilão, mais tarde ou mais cedo, acabará por se afogar no lamaçal que ele próprio cultivou, que acabará por provar o sabor das poções que tão maquiavelicamente engendrou para envenenar o herói. Gostaria de vos garantir que o universo conspira a favor dos bons e que a força das coisas é sempre positiva favorecendo o herói. Mas não posso. Nada disso vos posso anunciar, prometer ou garantir.

Se o fizesse era como o vilão, mentiroso e cobarde. A verdade é difícil e não é para os frouxos e indecisos. E se o fizesse, para além de mentiroso e cobarde, a História se encarregaria de me contradizer. A História diz-nos que nem sempre há heróis, ou que eles tardam, ou ainda que apesar da sua heroicidade nem sempre vencem, acabando muitas vezes vencidos.

O drama reside no tempo, na duração do reinado do mal, no desgaste que provoca no povo e na nação. Se for longo contai com os momentos em que tudo parece perdido e a libertação uma mera miragem, contai que nesses momentos o povo entrará em depressão, deixará de esperar, deixará de acreditar, deixar-se-á vergar.

Não existe nenhuma promessa ou garantia de que o bem triunfe sobre o mal, e sabendo isso o vilão inventou a mais perigosa das suas armas: a esperança. A esperança atrasa o homem. A esperança pode converter-se no pior inimigo do herói, se lhe for exterior, mais ainda do que o próprio vilão. A esperança que vem de fora, que conta com o nenhures algures, é oca e abstracta, é a desistência do homem, é a fuga da realidade para o subjectivo. Quando morreu a esperança comecei a viver, até aí vivia da esperança. Sei que isto é novo e é duro, mas é a verdade. “O tempo não se ocupa em realizar as nossas esperanças: faz o seu trabalho e voa.” (Eurípedes) Não é a esperança que realiza o teu trabalho, é o teu trabalho que fundamenta a esperança. É preciso, é crítico e imprescindível, que o herói não espere, que não conte com a esperança, mas que a faça, que a construa em cada momento, dia a dia. Assim haverá esperança! E é desta esperança, mas só desta, não suspiro mas suor, que sairá a vitória.

sábado, 19 de julho de 2008

44.D.Afonso Henriques - Fernando Pessoa

Pai, foste cavaleiro.
Hoje a vigília é nossa.
Dá-nos o exemplo inteiro
E a tua inteira força!

Dá, contra a hora em que, errada,
Novos infiéis vençam,

A bênção como espada,
A espada como bênção!

quarta-feira, 16 de julho de 2008

43.Duas faces da mesma moeda - 2.Alta corrupção

E quanto mais se afunda a democracia mais emerge a corrupção. Há assim uma equação em que a corrupção é inversamente proporcional à democracia – quanto mais corrupção, menos democracia – até que chega o momento em que o sistema, por razões de coerência, honra lhe seja feita, muda de nome, para um título mais a condizer com a sua personalidade, aparência e índole: de demo cracia para corrupto cracia.

Já lá vão mais de três décadas de regime e a corrupção alastra e aumenta, é um modo dandy de viver em sociedade, como diria Eça de Queiroz, ou talvez, é o modo dandy de se ser político e, ou, capitão de indústria, e não seria correcto dizer-se que o regime é completamente incapaz de lhe por cobro, mas antes que o regime não tem qualquer interesse em pôr-lhe cobro, já que nela, corrupção, joga a sua sobrevivência.

Há o medo de que a corrupção seja uma ameaça à democracia. Vêm atrasados. De facto a corrupção foi em tempos idos uma ameaça à democracia, depois foi deixada intencionalmente fora de controlo e durante décadas foi contaminando como doença difusa consumindo lenta mas inexoravelmente o país e a sociedade portuguesa, hoje é uma realidades institucional que arrasa, domina e substitui-se à democracia. Já o referimos: corruptocracia, só que há muitos de compreensão lenta… Há quem diga que é invisível. Só para os de olhar lento. Descobre-se em cada noticiário.

Quanto a números, como se houvesse números, a pseudo estatística é assim: primeiro, a maioria dos casos não são detectados, segundo, da maioria dos casos detectados, cerca de três quartos, apesar da instrução dos correspondentes processos-crime de corrupção, não chega sequer a tribunal, não passa da fase de inquérito, inquérito e arquivo, é o próprio ministério da justiça que o reconhece, terceiro, os detectados duplicaram na última década, quarto, dos chegados a tribunal uma quantidade apreciável morrem no meio das montanhas de papel, à espera da produção da melhor prova, ou arrastando-se de recursos em recurso até à prescrição, quinto, a esmagadora maioria dos ditos cujos envolve personalidades do mundo político e empresarial.

A Transparency Internacional (ONG – Organização Não Governamental) vem-nos dar a novidade de que em Portugal a corrupção no universo dos políticos e funcionários públicos aumentou. Já sabíamos. Apresenta um índice que denuncia o aproveitamento do serviço público em causa própria, quer dizer, abuso em benefício particular; são subornos a funcionários públicos, incluindo nestes os políticos, pagamentos por fora nas contratações do estado etc.

A OCDE (…) declara no seu relatório referente a 2007: “é insuficiente a luta que Portugal tem travado contra a corrupção”. Outra reprimenda que vem de fora para nossa vergonha.

A GRECO (Grupo de Estados Contra a Corrupção) diz: “falta de uma estratégia de combate à corrupção e dos meios necessários, materiais, financeiros e humanos (…) Do número de casos registados, poucos são os que chegam à fase de julgamento (…) Nos últimos anos, numerosos processos foram abertos contra ministros, sindicalistas, autarcas, empresários, etc. Muitos destes casos tiveram que ser arquivados devido a prescrição, pois um dos problemas com os crimes de colarinho branco é o de certos advogados utilizarem o actual sistema, o qual permite contestar durante o desenrolar da instrução, cada acto individual do juiz de instrução, bem como os recursos ao nível do Tribunal Constitucional, que não suspendem o prazo de prescrição”.

Maria José Morgado (Procuradora-geral adjunta e directora do DIAP de Lisboa - Departamento de Investigação e Acção Penal) diz: “(…) o combate à corrupção em Portugal está, e há-de continuar a estar paralisado, por força da própria corrupção de alguns poderes públicos, da incapacidade conjuntural do MP para a detecção e combate do fenómeno e duma inevitável estratégia de combate ao crime que, por razões várias, ignora imprudentemente o problema-corrupção (…) Os processos penais deveriam ser mais cirúrgicos, o Ministério Público deveria ter formação específica no crime económico e os julgamentos deviam ser realizados em tempo razoável (…) Há casos que se arrastaram durante dez anos em recursos sucessivos nos tribunais superiores, fazendo com que o excesso de garantias seja tão mau como a falta delas, pois ambas conduzem à impunidade. (…) Estamos a falar de uma criminalidade muito específica e muito «resistente» às instâncias penais”.

Marinho Pinto (Bastonário da Ordem dos Advogados) diz: “existe em Portugal uma criminalidade muito importante, do mais nocivo para o Estado e para a sociedade, e andam por aí alguns impunemente a exibir os benefícios e os lucros dessa criminalidade, sem haver mecanismos para lhes tocar. Alguns até ocupam cargos relevantes no aparelho do Estado português, ostensivamente”.

Maria José Morgado aprova as declarações do Bastonário: “merecem o respeito das denúncias corajosas, pois as práticas corruptivas ao mais alto nível de Estado corroem a democracia e desacreditam as instituições – capturam as próprias funções do Estado, colocando-as ao serviço de interesses particulares”.

João Cravinho (ex-deputado socialista) diz: “ a maior corrupção é a corrupção de Estado, é a que envolve os maiores valores e implica a submissão dos interesses públicos aos privados (…) A corrupção de Estado só é possível pela conivência de quem tem um alto poder”.

Daniel Kaufmann (director dos Programas Globais do Instituto do Banco Mundial) garante: “a diminuição da corrupção poderia pôr Portugal na senda do desenvolvimento, ao mesmo nível da Finlândia (…) A corrupção acaba por resultar numa desproporção para as famílias com menores rendimentos: pagam mais impostos do que deveriam, e parte dos seus rendimentos são gastos em «subornos» para terem acesso aos serviços públicos. Numa estimativa, as transacções mundiais são «manchadas» pela corrupção em perto de um trilião de dólares”.

Todos dizem. São muitos a dizer. Raramente se encontra tanta concordância sobre um mesmo assunto e assunto tão grave. Não há polémica. A verdade não se discute!

Fui à internet, escrevi a palavra corrupção, seleccionei “Páginas em Portugal” e em 0,30 segundos apareceram-me 759.000 (…)

Tenho que acrescentar mais três frases: “Talvez convenha perceber duas coisas sobre a corrupção. Primeira, onde há poder, há corrupção. E onde há pobreza, há mais corrupção. Destes dois truísmos resulta necessariamente que quanto maior é o poder ou a pobreza, maior é a corrupção”. (Vasco Pulido Valente / Público) - “Muita coisa que pode ser feita contra a corrupção e os seus caminhos não precisa de novas leis, nem de polícias, nem tribunais, precisa de políticos que se incomodem com o que vêem e que actuem politicamente”. (Pacheco Pereira / Sábado) – “A capacidade de combater a corrupção é um aspecto da auto-regeneração da democracia”. (Luís Salgado de Matos / Público).

Será que alguém, que não os próprios, ainda duvida que a corrupção não é um caso de polícia mas um caso de política? Mude-se a política, mudem-se os políticos, mas mude-se o regime, e a corrupção mudará.

sábado, 12 de julho de 2008

42.Duas faces da mesma moeda - 1.Baixa democracia

A democracia portuguesa é das piores da Europa diz a Demos (ONG – Organização Não Governamental) que tem por missão “"pôr a ideia democrática em prática". Investigaram, estudaram e chegaram aquela brilhante conclusão e a conclusão está certa só que nós, por esta latitude e longitude, já o sabíamos, somos viajados, e de que maneira, bastava perguntar-nos. E depois aquela ONG apresenta um gráfico chamado "Everyday democracy index" e lá vem Portugal na cauda. Foi notícia durante uns dias na imprensa portuguesa. Houve risos sarcásticos «eu bem te disse…» e choros tristes «aonde é que isto vai parar…» Passados pouco tempo tudo normal, que o povo não gosta de infelicidades.

Uma coisa é a orgânica – a estrutura formal da democracia – outra coisa é a democracia propriamente dita, isto é, a vivência democrática de factu e não de jure. A democracia teórica não interessa para nada, letra morta em papel esquecido, tipo pergaminho bolorento perdido no entulho, só interessa a democracia prática, a democracia que se vive, que se respira, que se sente, que se cumpre, e a democracia formal que temos em nada corresponde à democracia quotidiana que vivemos.

Pela orgânica vemos coisas, sistemas e instituições, que de fachada são todas mais ou menos parecidas, mais desenho menos desenho, mais figura menos figura, mais órgão menos órgão, pela real vemos pessoas, cultura e atitudes e aqui é que a porca torce o rabo. Também já o sabíamos.

Quanto à cultura faltam cidadania e responsabilização, e quanto à atitude faltam empenho e participação, quando ambas, cultura e atitude, deveriam constituir o substrato da verdadeira democracia, seu fundamento e orientação, e deveriam a partir da prática inspirar a teoria. A teoria democrática existe para servir a prática democrática e não ao contrário. E porque é que faltam cultura e atitude? Porque falha o exemplo e o enquadramento!

O que está em cima dá péssimo exemplo de cultura e atitude, o que está em baixo imita-o; o que está em cima é prepotente, o que está em baixo desenrasca-se como pode, não tem nada que saber, é a lei do exemplo. É claro que há filhas sóbrias de mães bêbadas, e filhos honestos de pais gatunos, que o pecado ou o crime dos outros não justificam os nossos, mas uma coisa é falar da responsabilidade e consciência individuais, outra coisa é falar do estado ético e anímico do povo. Não sejamos irrealistas, se os governantes são maus e se o seu exemplo é péssimo é esse o enquadramento que o povo tem e será essa a moral que alastra e domina. O resto são cantigas.

Quer-se a decência? Então que se comece por cima pelo exemplo da decência. Quer-se mais democracia e menos corrupção? Então que se comece por cima pelo exemplo da democracia e da integridade. Que se comece sempre por cima porque é de cima que deve vir o bom exemplo e não se faça do povo bode expiatório do pecado e do crime que de cima lhe cai. E se o exemplo for bom, bom será o enquadramento, e sendo bom o enquadramento, bom será o povo.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

41.Vencer o Herói (5)

O vilão para realizar a sua ganância tem que vencer o herói, para isso se preparou, por isso se profissionalizou. Síndroma e demanda justificam-se uma à outra e convergem. Quanto mais poder, menos povo, ou dito de outra forma, poder à custa e contra o povo. Quando se quer servir o povo não se busca o poder pelo poder, este é uma consequência benévola e um fardo, e não um fim em si, malévolo e um troféu, é um serviço e uma missão, não um interesse e uma retribuição.

Para o vilão o povo não é sujeito, é objecto, não existe para ser servido, mas para dele se servir e com esta mente e visão e este coração e obsessão vai empenhar-se na luta contra o herói, com estratégia e táctica. Leva consigo um plano de combate, minucioso e exaustivo.

Primeiro, ofuscar, embotar e cegar.
É a época do embala, programa de governo e muitas juras. Tudo é possível, tudo se promete. O povo diz: muita areia para os olhos, mas o que é certo é que deixa-se ir na canção do bandido.

Segundo, humilhar, acabrunhar, curvar e avassalar.
Afinal não era bem assim, chega a realidade e está tudo como dantes. O bom do Zé é apanhado na teia prepotente da burocracia pública, vemo-lo de boina na mão de cá para lá a pedir por amor de Deus faça-me lá esse jeitinho.

Terceiro, dominar, subjugar, sujeitar e submeter.
E olhado pelo governo como pessoa de má fé, o homem é mau por natureza, etc. há que prevenir que nunca se sabe, etc. é vítima de legislação estúpida que o trata como estúpido, anacrónica que o trata como atrasado, contraditória que o trata como bruxo, feita em cima dos joelhos pelos boys dos partidos.

Quarto, docilizar, amansar, domar e domesticar.
O governo esperto, mas só para os incautos, acena com maços de articulados, quanto maiores e mais pesados mais valiosos, a que chama de reformas, mais uma mãozada de areia para os olhos, mais um enxerto na manta de retalhos, desbotada e puída, a esfacelar.

Quinto, abafar, amordaçar, calar, coarctar, coibir e reprimir.
E ai do verdadeiro, íntegro, competente e corajoso que se levante e denuncie, o rei vai nu! Logo se lhe trata da saúde, ou pela difamação, ou pelo fisco. O sistema não pode tolerar tais aves raras. Mas a quando dos seus próprios escândalos e broncas o governo tem uma palavra que safa tudo: inquérito. Abrem-se muitos, fecham-se poucos. Afinal vivemos na realidade e está tudo como dantes.

Sexto, manietar, aprisionar, algemar, acorrentar e agrilhoar.
O bom do Zé sente-se completamente impotente e não enxerga onde está a democracia. Quer participar mas é posto de fora. Entretanto o governo em vez da polícia política, demodé, usa a polícia fiscal, à la carte, em vez da segurança do estado evoca a insegurança do deficit, a partir daí inventam-se, duplicam-se e multiplicam-se impostos e multas, taxas e coimas, tributos e juros etc. e penhoras, penhoras e penhoras.

Sétimo, debelar, desbaratar e abater.
Mente às empresas, quase sempre às pequenas, contrata e não paga, é caloteiro, não se sabe o que faz dos fundos comunitários, fomenta o desemprego.

E finalmente vencendo, escravizar ou aniquilar.
É a falência das empresas, só no primeiro trimestre foram treze mil, lança multidões para a sopa dos pobres, forja um Portugal desesperado por baixo do verniz da mentira.

sábado, 5 de julho de 2008

40.Direitos Humanos e Tribunais

Marinho Pinto, Bastonário da Ordem dos Advogados, diz em entrevista no canal de televisão SIC Notícias, sem hesitação, directa e frontalmente, que os lugares em Portugal onde os direitos humanos são mais violados são os tribunais. Está gravado, é só questão de rebobinar.

O Bastonário é assim como o Presidente da dita Ordem, não é propriamente alguém que ia a passar pelos corredores dos estúdios daquele canal e foi filado por lotaria para um inquérito de opinião, representando portanto um juízo douto, experiente de lides e conhecedora de causas.

Ora esta afirmação, vindo de quem vem e recaindo sobre quem recai, é gravíssima, quanto ao seu significado e alcance, não havendo enviusamento possível por mais tortos que sejam os olhos, ou mais acerados que estejam os ouvidos. Tribunais só podem significar uma de duas coisas, se bem que comadres e entrançadas, ou a justiça, coisa abstracta, ou os juízes, coisa concreta.

E a gravidade, gravíssima, é que pelo menos umas das duas, a justiça ou os juízes, violam os direitos humanos, ou cada uma à sua vez, ou as duas de uma assentada e sendo comadres e entrançadas vá-se lá saber onde uma começa e a outra acaba.

Mas não nos afastemos em elucubrações da simplicidade eloquente daquela denúncia, já que ela é suficientemente eloquente por si própria, simples e fácil de perceber, não precisando de explicações ou aprofundamentos. O que interessa reter é que quando uma afirmação ou acusação deste tipo é produzida pelo patrono dos patronos num estado que se diz de direito muito haverá que endireitar pois de direito não tem nada.

E aqui das duas uma, ou achamos muito bem como está - os lugares em Portugal onde os direitos humanos são mais violados são os tribunais – e é só preciso mudar o nome do estado e do regime, podendo sempre ir buscar inspiração a uma ditadura do quinto mundo, ou talvez sexto, ou então reformamos, melhor dizendo, revolucionamos, a justiça e os juízes, que sendo comadres é melhor tratar dos dois de uma assentada.

Enquanto isto se passava em Lisboa, Noronha Nascimento, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça – hesitei entre escrever as iniciais com letra grande ou pequena e acabei por cometer um erro de semântica – deslocava-se a Santa Maria da Feira – por coincidência na mesma sexta-feira de Junho do evento anterior – para solidarizar-se, palavra sua, com o fecho do tribunal local, provisoriamente instalado num pavilhão, assim parecia na reportagem da televisão pelas altas vigas e tectos, justificando esse fecho pela falta de condições. «Não há qualidade». São as suas palavras que retive da transmissão. Também se pode rebobinar para confirmar.

Fiquei muito contente, um encher de pulmão e um brado de louvor, apressando-me logo a solidarizar-me, para usar a mesma e sua palavra, com o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro na sua determinação de, não havendo condições, referindo-se seguramente à qualidade da justiça e dos juízes, aferrolhar o tribunal. Pois muito bem, se não têm qualidade nem a justiça nem os juízes que se interdite o estabelecimento. Não posso estar mais de acordo!

Homem de tão grande quilate, douto, experiente de lides e conhecedor de causas, como adjectivei o Bastonário, não iria com toda a certeza inquietar-se com ninharias como a cor das paredes, a altura do tecto, o desenho do mobiliário ou afins, coisas de forma e do corpo, mas teria, isso sim, o olhar elevado, já o advínhamos com magnitude, para coisas de conteúdo e do espírito. Afinal esse é o reino da justiça, da ética, da moral, dos valores e dos princípios e não as estantes, os ficheiros, as secretárias, as cadeiras e os afins.

E, de repente, tive um pressentimento: teria o Presidente do Supremo Tribunal ouvido nesse mesmo dia a grave acusação do Bastonário da Ordem dos Advogados e fazendo jus à sua posição e responsabilidade iniciado, homem sábio e valoroso, o saneamento dos tribunais, justiça e juízes, na demanda de endireita do estado?

E assim persuadido sosseguei. São destes homens, de visão profunda e ampla, que precisamos em tão altos cargos.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

39.Porque corre o vilão? (4)

Haveria de fazer-se uma psicanálise ao vilão, à legião.

Primeiro separando-os por caras, qualidades, afilhados conexos, etc. depois isolando-os um a um, em sala individual, de preferência bem ventilada, a seguir juntando-os em grupos, primeiro segundo critério de afinidades, depois aleatoriamente, e isto tudo muito bem feito, conforme método científico reconhecido, mobilizando os recursos financeiros, técnicos e humanos necessários a tão relevante investigação, obtendo inclusive o concurso de especialistas de renome, estrangeiros e bem pagos, e então, colher os dados, revê-los e revirá-los, sistematizá-los, dar-lhes lógica, por fim informatizá-los, encher toneladas de dvds dessa preciosa informação, utilíssima para todas as gerações, incluindo as vindouras, nada descuidando, nada relegando, e depois, uma vez o trabalho conscienciosamente concluído, com esmero, pronto e prestes à grande revelação, erguer em monumento a pilha gigantesca obtida, e deitar-lhe fogo.

Porque já se conhece a patologia, basta para isso perguntar ao povo, que nestas coisas é cientista. O vilão tem um síndroma já homologado que se chama sofreguidão de ganância de poder, quer mais, sempre mais, corre desenfreadamente por uma sofreguidão de ganância de poder. Coitado está sempre insatisfeito, já lá dizia Buda: “o desejo é a raiz de todo o sofrimento”.

Algures, um progenitor, um mentor, um estupor, conspurcou-o com a febre do poder e desde então não pensa, não sente outra coisa, entranhas cheias palpitantes de mando, de sucesso, de prestígio.

Inicia-se, estuda e aprende, Urdiduras e Teceduras, Tramas e Teias, decora e guarda, concluiu o tirocínio; prossegue, medita e assimila, Manobras e Estratagemas, Enredos e Intrigas, fixa e retém; continua, descobre e compreende, Maquinações e Conspirações, Conjurações e Fabricações, Conluios e Traições, regista e arquiva; ascende, industria-se e pratica, Ciladas e Emboscadas, Armadilhas e Ardis, Artimanhas e Artifícios, está quase um mestre de política; concluiu, Arrioscas e Aleivosias, Felonias e Insídias, temos vilão!

Estudioso aprimorado, discipulado excelente, diplomado com distinção. Inscreveu-se cedo no partido, leu Maquiavel e afins, educou habilidades, desenvolveu qualidades, forjou o carácter, temos vilão!

Tudo isto por culpa do síndroma.

sábado, 28 de junho de 2008

38.A quinta qualidade da inconsciência de o ser (3)

Há uma quinta qualidade curiosa que se junta às quatro primeiras na formação do carácter do vilão. É a inconsciência de o ser. O vilão tem esta característica peculiar que é a de não ter consciência de que é vilão. Quando se olha empertigado ao espelho só se vê estrela de telenovela, não vê nem o carácter, nem as qualidades e muito menos as afilhadas, só vê estrela! Espelho mágico, diz-me qual é entre todos os belos o mais belo?

Paradoxo interessante de ser tão vilão e não saber que se é, de ter tantas máculas e não saber que se tem, o que se explica por um fenómeno chamado perda de lucidez e que ocorre quando entra no sistema ou sobe ao poder. Ele até pode não ser um mentiroso compulsivo, ou um corrupto arreigado, ou um incompetente inveterado, ou um cobarde endémico, mas torna-se nisso tudo quando entra no sistema ou sobe ao poder, e quando os outros, os de fora ou de baixo, o chamam de vilão, falho de carácter e farto de pecados, fica muito indignado e ofendido, como se o difamassem injustamente, quando apenas, esses sim, são exemplo de lucidez, pois o facto de o rei ir em pelota não lhes acanha a vista. Então a culpa é do sistema? Não, a culpa é do vilão, legião, que faz o sistema que o faz a si, aconchega o corpo na cama que o há-de aconchegar, num jogo voluntarioso de promiscuidades perpétuo.

Se um dia porém o apanharmos de parte, o subtrairmos às más influências, no recato de um sofá e de uma lareira, onde não haja espelhos, ou de uma mesa recôndita num café discreto e sossegado, onde não hajam mirones, e ele se sinta simples, anónimo, sem ter que provar ao progenitor, mentor, ou estupor, até vai parecer uma pessoa normal, com laivos de bom senso, ideias razoáveis, sentimentos equilibrados, mas depois, logo que se escorra e se enfie, se apadrinhe e se promíscua, esquece-se de tudo completamente, muda de personalidade e volta à vida, ao carácter, às qualidades e às afilhadas do vilão.
Era preciso trazê-lo sempre à trela, nos bons princípios e convivências, afastá-lo das más companhias, que são tentação e perdição, mas convenhamos, que sendo já um homenzinho não só pareceria mal como cada um de nós já tem os seus que cuidar.

A questão é que a inconsciência, pela perda de lucidez, a ninguém ilibe e muito menos ao homem público; a inconsciência é a irresponsabilidade. O homem quer-se responsável, condição básica da sua racionalidade e ao político são exigidas, razão e responsabilidade acrescidas.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

37.As quatro qualidades do vilão e o cortejo de afilhadas (2)

O vilão compõe o seu carácter de quatro qualidades principais e um cortejo de afilhadas.

É mentiroso, mas de uma maneira enviusada – nem na mentira usa o olhar de frente, mente de lado – conforme as voltas e reviravoltas a dar para sair do labirinto onde se enfiou; rebuscada – imaginação e pretextos não escasseiam – conforme a largura e comprimento da manobra necessária ao engano; alternante – às vezes troca tanto que se troca - conforme a novidade da circunstância e a memória dos fregueses. No cortejo do mentiroso atropelam-se excitadas, a falsidade, a hipocrisia, o cinismo, a aldrabice, a intrujice, a torpeza, o despudor e o descaramento, estes vão nus.

É corrupto, não sagra o princípio, não absolutiza o valor, mas vende-se ao interesse e relativiza a verdade. É de circunstância, nem preto, nem branco, a modos que cinzento escorregadio, é uma cana ao vento. Na comitiva do corrupto apinham-se histéricas, a vigarice, a trafulhice, a falcatrua, a trapaça, o logro, o embuste, a burla e a fraude. São tantas que perde-se-lhes a cauda.

(Se falho de musa adjectivante, acendo a televisão, olho para eles, e logo a inspiração vem a golfadas.)

É incompetente, não sabe fazer, nunca fez, chegou lá por portas travessas, compadrios, clubes e derivados, e por lá se mantém graças a uma coisa que se chama confiança política e que em linguagem comum, simples, terra a terra, significa pacto de malfeitores – também há a expressão popular lei da rolha, ou para a cosa nostra, lei da omerta -. Na corte do incompetente banqueteiam-se impávidos, os básicos, os nabos, os broncos, os toscos, os empatas e os penduras como figurinhas de primeiro plano.

É cobarde, pois tudo o que faz, que não faz, é politicamente correcto e não sai como a mula doméstica da correnteza dos varais sob pena de, sendo incorrecto ou descabido, ver-se flagelado, primeira instância, ou expelido sem recurso, pelo sistema, que tem um pavor de morte destas desestabilizações anti-democráticas, que a liberdade é uniforme. No séquito do cobarde disfarçam-se medrosos, os esguios e os escorregadios, os untuosos, os atados, os moles, os frouxos e a fechar os maricas.

sábado, 21 de junho de 2008

36.O vilão é uma legião (1)

O vilão é uma legião, já o fora o diabo e os demónios, compridíssima e caleidoscópica, de inúmeras caras, desde a mais esbranquiçada, falta-lhe o sangue e a gana, à vermelhona, transbordando de humores, passando pela rosácea, aduladora ou manteigueira. Ao natural são todas insanas, mas tratadas não se descortina a treta, escondem-na na cosmética, nos liftings e sobretudo nas máscaras, mais práticas, facilmente descartáveis.

De resto, uma das particularidades do vilão é esconder-se e para isso reportório e artimanha não lhe faltam. Esconde-se atrás da política, da palavra e da promessa, esconde-se atrás do partido, esconde-se atrás da instituição e do cargo, esconde-se atrás da crise e destas vão-se inventando na variedade e gravidade recomendáveis, conforme o desenrasque urgir e a ingenuidade do povo permitir. É um escondidão. Fez do jogo das escondidas uma arte.

O vilão é o político, por estes tempos e locais ocidentais, é a legião que forma a classe política, ovelha e rebanho ranhosos da nação, e vai desde aprendiz tenro a veterano musculado.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

35.Sofrimento mínimo

O homem não se cansa de descobrir coisa novas e ainda bem, foi para isso que foi feito, ou que se faz, razão e compreensão dão-lhe um estatuto ímpar na natureza, diria numa frase com pompa: a descoberta engrandece e enobrece o homem!

A ciência porém esclareceu recentemente que afinal o homem não é, a seu modo, ímpar, isto é, singular, na animalidade terrena, mas existe outro igualmente ímpar, a seu modo.

Há de facto um bicho que não tem cérebro, mas que apesar de tudo vive, que não tem sentidos, mas que apesar de tudo diferencia o verde dos campos do vermelho do sangue, ouve o chocalho distintamente da corneta, atrai-o o perfume da comadre, repudia o da burra, sente uma festa, mesmo que não reconheça se de amizade se de fingimento, ou uma mosca que o irrite e por isso a enxota, saboreia a contento a erva fresca, cospe sem engano o excremento, mas que e finalmente não tem dor! E isto é ímpar! Um animal sem dor e por isso sem cérebro, mas que apesar de tudo vive e ainda por cima tem todos os sentidos em ordem! Milagre!

É o touro, em tudo igual aos outros animais menos na dor! Único, inclusive contando com o humano, que bem sabe o que é doer!

Mas estou na dúvida, não sei se esta descoberta cabe melhor na ciência se na cultura, e ainda tenho outra, não sei se é maior o animal - aqui já emprego o termo no sentido pejorativo de besta – que espeta, se o espetado.

Se decidir a favor do que espeta perco todo o respeito por mim próprio, eu que me julgava homo sapiens, orgulho da criação e ou evolução, sou afinal uma coisa triste, uma bicheza inferior, se decidir a favor do que é espetado os biólogos haverão de dizer que sou um ignorante…

Quando publiquei no blog o manifesto do Silva Garcia contra as touradas o António reagiu, mal e depressa, por e-mail: «Discordo profundamente desse senhor! Tenho uma dúzia de bons argumentos a favor da tourada à portuguesa (sofrimento mínimo, bandarilhas de plástico…). Essa ideia pertence à doentia corrente “urbano-depressiva” contra o saudável ruralismo. É a cidade contra o Campo. Da próxima vez que falar contigo hei-de comparar a tourada ao futebol…»

Respondi-lhe logo: «e da próxima vez que estiver contigo hei-de perguntar-te, pois morro de aprender, o que é que tu entendes por sofrimento mínimo, e enquanto te pergunto vou-te torcendo uma orelha a princípio com moderação continuando mesmo depois de começares a berrar até fazer um bocadinho de sangue, sim porque tens de deitar umas gotinhas que sejam, senão não vale, ou então levo uma agulha e começo a picar-te ao princípio ao de leve continuando mesmo depois de começares a gritar até brotar o vermelhinho. Tens de me explicar o que é isso do sofrimento mínimo. Talvez tenhas uma régua, régua não que é muito arcaico, mas um sensor electrónico, que eu, ignaro, desconheça, para por nos touros e que eles possam accionar por vontade como quem diz «eh pá! não exageres que já estás a magoar!»

Deixei uma linha, que gosto de separar os assuntos, cada um à sua vez, e continuei: «e depois chamas-me urbano-depressivo, vou-te pedir explicações…, e a cidade contra o campo, eu que adoro o campo e detesto a cidade! Mas o que é que uma coisa tem a ver com outra? Então para gostar do campo é preciso gostar de touradas? Quando for para o campo tenho que me munir de espada, bandarilhas e capote e andar atrás dos touros a ferrá-los – devia ser bonito, escorregava na primeira bosta e lá me ía - senão sou mal visto, mal recebido, escorraçado, como um estranho, como um inimigo, melhor dizendo, como urbano-depressivo? Bom, se os teus onze argumentos restantes, apenas prometidos mas não entregues, são do mesmo quilate, devem seguramente constituir erudita enciclopédia».

Este é um daqueles assuntos de juízo tão óbvio que chega a ser difícil arguir, é um paradoxo, eu sei, mas quando a evidência é tão manifesta, tão visível e clara, mesmo descarada, não conseguimos perceber como é que o outro não vê, e perplexos dessa humana impossibilidade ficamos sem palavras.

Prefiro citar Victor Hugo: “Primeiro foi necessário civilizar o homem em relação ao próprio homem. Agora é necessário civilizar o homem em relação a natureza e aos animais."

E depois para além do sofrimento está em causa a dignidade do próprio homem. Mesmo a acreditar naquela descoberta científica de que o touro por não ter dor não tem cérebro, ficava por resolver o problema da dignidade, e não será a dignidade, mais ainda que a razão, o grande e distintivo atributo do homem e que lhe confere o estatuto de ser superior? Para mim parece-me elementar que o aviltamento gratuito do alheio trás por inerência o rebaixamento do próprio.

E poderá haver cultura sem dignidade? A cultura não é saber equações matemáticas de cor, fórmulas químicas na ponta da língua, latitudes ou longitudes e nem sequer a gramática de trás para a frente. A cultura é saber usar o conhecimento para a compreensão e a compreensão para a elevação do homem.

E o texto que tanto reboliço causou ao António e que eu subscrevo integralmente era este. (Ver: Crónica 17)

Depois deste texto seguia-se uma proposta de moção a favor da declaração municipal simbólica da Póvoa de Varzim como cidade anti-touradas.

Fui buscar o alfinete para não me esquecer. O facto de sermos amigos não significa que da próxima vez, como prometido, não o pique…


sábado, 14 de junho de 2008

34.Em defesa da História

Estava de pé, e ela sentada, contava-lhe factos políticos históricos, e ela jovem, vinte e poucos, cara expressiva, modos despachados, esperta mas pura, resposta pronta nem sempre pensada, fitava-me presa e desconcertada, eram tantas as surpresas sobre o que lhe tinham dito e falado, olhos vivos, arregalados, e interrompia-me como já o fizera amiúde e de seu modo impulsivo e dizia-me «já há tantas associações por isto e por aquilo, porque não criar uma Associação para a Defesa da História?» e interrompi-me, agora eu, suspenso naquela ideia original, que nunca me atravessara, tão oportuna e necessária para este país, para esta geração e neste tempo, revirei-a, meditei-a por instantes e como quem lhe passa pelas mãos uma causa que não pode segurar respondi-lhe: «realmente é uma excelente ideia, mas eu já tenho tanta coisa que não posso, pode ser que alguém se lembre e eu adiro».

Chama-se Raquel. São estes filhos que um dia haverão de repor a verdade.

No dia seguinte tinha um e-mail dela:

«Zé, não me consigo conformar com esta “história”… Se tivesse capacidade era eu própria que constituía a Associação, movimento, grupo, qualquer coisa! Reunia os vivos que pudessem testemunhar, pesquisava os escritos do meu avô, registos, cartas, enfim! Qualquer coisa! Estou indignada e até afectada! Sinto-me enganada, traída e abusada! Como é possível!?!? Não me sai da cabeça…!

Reli o e-mail. Tristeza e esperança. Tristeza pela impotência, que sou, esperança pela semente, que será.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

33.Não mintam mais aos nossos filhos! (2)

«Meu caro Zé», era a primeira linha e a primeira frase. Abrira com alguma perplexidade, confesso, essa carta imprevista que recebera do António, já que sempre nos correspondíamos por e-mail e por isso mesmo esta surpresa formal, quase preocupação, dada a parcimónia da comunicação.

Papel com marca de água, num cinzento quase branco, impecável, a feitio do autor, escrita à mão dum fôlego, sem rasuras, ou então ensaiado e passado com esmero para realçar a gravidade, continuava na terceira linha: «Fazendo minhas as tuas palavras “esta é a minha pequeníssima contribuição, mas já é alguma, para o movimento de indignação nacional”, venho, a propósito destes dias de fins de Abril em que as mentiras retornam dos buracos e saiem desbragadas, o que já vai sendo apanágio da terceira república, tecer, para memória futura, que tu é que és exímio em arquivos, umas considerações sobre o torcer mentecapto da história».

Mais aliviado, não havia prisão nem revolução na vida do António, sentei-me.

«A primeira refere-se à construção da História, não a dos factos genuínos realmente acontecidos, mas a da versão falseada que sobre eles o poder dominante edificou. Como sabemos a História é dos vencedores e não dos vencidos, destes não reza a história, como é comum dizer-se, quer isto significar que os vencedores materiais, de factu e com toda a probabilidade não de jure, forjam a contorção que mais lhes convém para justificarem a si próprios e ao mundo o porquê dos actos empreendidos, a qual versão passa a ser desde então a oficial. E quanto mais a vitória é imoral ou injusta, caso houvesse lugar para aplicar tão cândidos conceitos no contexto do poder e da força, maior é a mentira dos vencedores. Sempre foi assim e continuará a ser. Já na antiguidade dizia Breno, célebre caudilho gaulês que derrotou e saqueou Roma no ano de 390 a.C., vae victis! Ai dos vencidos! Ou nas palavras de Charles Percy Snow “ A história não tolera as derrotas”.

É preciso pois que passe a geração dos vencedores e fazedores da história para que aos poucos e poucos a verdade aprisionada comece a libertar-se. Muitas vezes é necessário mais do que uma geração, tão enraizada na cultura oficial foi a mentira, e é sempre dramática a revelação da realidade porque fatalmente acabará por opor pais e filhos, os pais porque autores ou cúmplices de um falso legado, os filhos porque descobrem ser vítimas de um embuste.

Ora desta falsificação da História não se escaparam nem Portugal nem os portugueses no que se refere quer ao 25 de Abril, quer ao processo de descolonização. A história que nos tem sido contada pelos seus protagonistas e afins, geração ainda viva, está cheia de mentiras, pelas razões óbvias de tentar esconder a verdade sobre si próprios, de quem eram, e de justificar à luz de ideais não existentes, porque o fizeram.

Desta geração, há uns que viveram a História e conhecem a verdade, mas não têm assento, nem voz, há outros que também a viveram e torcem a verdade, por exclusivas razões de má consciência ou de outra forma perderiam respeito por si próprios, e há muitos outros que não sabendo minimamente do que falam, ou papagueiam o discurso disciplinado do politicamente correcto, ou ainda, por maior zelo de conveniência, mais inventam. Que os segundos tenham mentido a si próprios e à sua geração é grave, que os terceiros, meros fantoches daqueles, os imitem na mentira, continua a ser grave, mas agora que ambos mintam descaradamente aos seus filhos, isso já é intolerável.

O mal está feito, em muitos casos irreparável, o tempo não retrocede, a História é assim, não há uma história perfeita, os vencedores mentiram, esconderam-se na falsidade, não tiveram a coragem da verdade, foram cobardes, hoje poderão não ter ainda a bravura do arrependimento e da confissão, o homem é fraco, mas há uma coragem mínima que lhes é exigida, não mentirem mais aos seus e aos nossos filhos. Se não a tiveram para si que a tenham pelo menos para os seus filhos! Chega de história política, é tempo da verdadeira História.

E eram estas as considerações que as reportagens e entrevistas de circunstância por esta época realizadas com figurinhas do passado presente me exigiram, e muitas reposições de verdade seriam necessárias, em tamanho bordel de falácias, para endireitar reescrever a História desde o 25 de Abril. Sabes do que falo e por isso não me estendo em ditos e desditos, por redundante e falta de pachorra, que só aos ignorantes aproveitariam».

Sim, de facto, para quem viveu a verdadeira História, como ele e como eu, não era preciso entrar no inventário infindável das contra-facções. Terminava e abraçava-me. Fiquei a pensar que a única justificação para a formalidade da carta era a de simbolicamente dar peso à gravidade da revolta. Mas haveria de tirar a limpo.

Mais abaixo tinha ainda um post scriptum que dizia:

«Para aqueles que no futuro lerem esta carta, escrita e enviada nos finais de Abril do ano de 2008 ao meu amigo Zé, deixo uma nota de precaução que infelizmente se justifica na previsão da fuga de certos leitores facciosos, intelectualmente desonestos, que não tendo argumento que contrarie a verdade, procuram desviar as atenções para o lugar comum dos rótulos ideológicos apressados e mais viciosos. São estes os caciques que, depauperados de toda a integridade e falhos de toda a imaginação, enchem a boca dos vocábulos, reaccionário, colonialista, fachista, etc. Mas desenganem-se tais enganadores, pois provavelmente, se não fosse a modéstia diria seguramente, sou na prática da vida mais apologista da autodeterminação dos povos e da verdadeira liberdade dos cidadãos, que outra coisa não poderia patrocinar em coerência com a defesa dos direitos humanos de que me tenho constituído acérrimo combatente, na rua e não no gabinete, do que muitos daqueles serão mesmo em teoria. E por isso podem pois esses senhores abster-se dessas fabulações descabidas e num rebate de valentia reflectirem sobre o espelho da consciência. Fica assim desfeita a previsível refutação da quinta coluna, porquanto não é nada disso que se trata mas de repor a verdade histórica das intenções e dos factos».

sábado, 7 de junho de 2008

32.O homem criou, o capital destruiu

“Em 1996, as primeiras viaturas eléctricas de produção em série, os EV1 (Electric Vehicle 1), foram fabricados nos EUA pela General Motors, e viram-se a circular pelas estradas da Califórnia. Eram viaturas rápidas: faziam dos 0 aos 100 km/h, em menos de 9 segundos! Não produziam nenhum gás de combustão (nem sequer tinham tubo de escape). Eram facilmente recarregáveis com energia eléctrica na garagem de casa. Dez anos mais tarde, estes carros do futuro desapareceram completamente! Como é isto possível? Em primeiro lugar, estas viaturas não podiam ser compradas, mas unicamente alugadas! Os contratos de aluguer não foram, pura e simplesmente, renovados. A General Motors recuperou todos os EV1, apesar da oposição dos seus utilizadores e depois… …DESTRUIU… todas estas viaturas.

Em 1997, a Nissan apresentou o modelo eléctrico Hypermini no salão de Tokyo. O Município da cidade de Pasadena (Califórnia - EUA) adoptou esta viatura como veículo profissional para os seus empregados. Foi muito apreciado pela sua facilidade de manobra e estacionamento, e ainda pela sua grande operacionalidade em movimentar-se dentro da cidade. Em Agosto de 2006, expirou o contrato de aluguer das referidas viaturas, entre a Nissan e o Município de Pasadena. O Município tentou comprar as viaturas mas a Nissan recusou peremptoriamente, tendo-as recuperado todas para as DESTRUIR!

Em 2003, a Toyota decide parar a produção do RAV4-EV. (EV - veiculo eléctrico). Este 4x4 eléctrico, um produto de alto refinamento tecnológico, era muito estimado pelos utilizadores. Em 2005, os contratos de aluguer das viaturas, expiraram. A Toyota imediatamente se apressou a recuperar todos estes veículos afim de os… DESTRUIR!

Mas entretanto, alguns cidadãos americanos começaram a organizar-se: A associação “DontCrush” entra em acção para tentar salvar os RAV4‑EV. Esta associação fez pressão sobre a Toyota durante 3 meses. Finalmente VITÓRIA! A Toyota recuou e autorizou, os que alugaram estes veículos RAV4‑EV, a comprá-los”.

A gigantesca prensa metálica, uma vez accionada, soltava um ronco sinistro enquanto as suas manápulas gémeas, paralelas, se aproximavam uma da outra, lenta mas inexoravelmente.

O carro eléctrico, vermelho vivo, de aparência igual a tantos outros e que mesmo de perto não confessava a sua particularidade distintiva, arrastado contra vontade, se a tivesse, sobre a manápula inferior, esperava sem esperar, na inconsciência material do não saber.

De repente, o ronco infausto da prensa muda abruptamente para um resfolgar acidentado, chiadeira descontínua, ora guincho, ora grito. A plataforma de cima esbarrara no tejadilho do carro, mas logo sem interrupção de marcha, sem indecisão ou contemplação, prosseguira, prensando, comprimindo, calcando, achatando, por fim esmagando o carro, novo em folha, vermelho vivo, igual a tantos outros mas com a desventura de ter nascido eléctrico.

Faz impressão olhar daqui este cenário, este amontoado de chapas metálicas, disformes, outrora soerguidas, elegantes e orgulhosas, lançadas umas sobre as outras, reflectindo aqui e ali um raio de sol, neste cemitério macabro de sucata.

O homem criou, o capital destruiu.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

31.Dois records dignos do Guiness

Quando Sir Hugh Beaver, progenitor ainda sem o saber do Guiness, discutia qual seria a ave de caça mais veloz da Europa, se a tarambola, se o galo-selvagem, estava muito longe de imaginar que um dia, cinquenta e sete anos depois e a mais de dois mil kilómetros de distância da sua caçada, um estado, um governo, bateriam um record difícil e original, o de conseguir aumentar por dezassete vezes consecutivas e em menos de cinco meses o preço da gasolina.

Os portugueses passaram a ter em média uma vez por semana e para quebra da monotonia das suas vidas, já de si tão pouco sobressaltadas de inovações, uma surpresa, quando, ou na ida para o trabalho, ou na volta para casa, a mula sofisticada que os carrega reclamava voraz, não maior ração, mas ração mais preciosa. Afinal o que na barriga do mamífero entrava era o mesmo, assim confirmava o mostrador das porções, mas o que saía do dono era mais, assim se queixava o erário doméstico.

O governo está de parabéns, nem tudo são coisas más, isso só para os pessimistas e para os derrotistas e para os deprimidos, etc. etc. etc., por ter conseguido o feito de entrar para o Guiness e logo em duas categorias. A primeira já se vê, foi aquele facto difícil e original em andamento prestíssimo, e a segunda, menos difícil e menos original, para de quem se trata, mas contudo igualmente logradora de record, foi a monstruosa mentira sob a qual aquele se monta e se juntarmos as duas ficamos com uma montanha combustível, perigosa e imprevisível.

E então não é que desta última vez as petrolíferas avisaram que o aumento era a partir da meia-noite, e lá vai o bom do povo para as bichas a ver se ainda poupa uns tostões, e os malandros a mudarem os preços às onze horas, e o bom do povo feito papalvo, e as gasolineiras a desculparam-se que a culpa é das bombas que são automáticas, e o bailinho a prosseguir e a música sem parar e a garraiada a triunfar e vai de vento em popa sem pudor que tudo é descaro e uma mulher que sai do carro e pede para a revolução não se atrasar porque senão quando vier só há ossos para guerrear…

Aqui há uns tempos recebi um e-mail do Manuel, o apelido fica para mim, salvo seja, que anda para aí muita represália, e loucos como eu que vejo o rei em pelota e tendo a fala desabrida dos heróis não me embaraço em titubeadas mas reclamo alto e a bom som pelo povo, incluindo neste os mudos de vontade, não têm que ser todos, digo, os loucos como eu, e por isso a ocultação do apelido do Manuel que então desabafava assim:

“Fui informado recentemente que os preços de uns produtos químicos comercializados pela empresa onde trabalho iriam subir novamente devido ao aumento do preço do petróleo. Todos os fins-de-semana meto gasolina no carro, e cada vez preciso mais euros para comprar menos litros de Super-95. Dizem-me que é por causa do preço do petróleo. Assim, fui à net buscar umas tabelas/imagens e comecei a fazer umas contas”.

Depois vêm uns quadros com muitas linhas, colunas e números, com os quais não vos maço, podendo sempre o espírito, ou curioso, ou desconfiado, imitar o Manuel e dar-se ao trabalho como ele de ir à net, portanto e continuando, para os que fazem fé, passo por cima dos quadros e vou á sua conclusão.

Então temos, dizia ele:

- Em 2000, um barril de petróleo custava 63 USD, ou seja, 70.00 EUR (1.00 Eur = 0.90 USD). Em 2008, um barril de petróleo custa 98 USD, ou seja, 70.00 EUR (1.00 Eu = 1.40 USD).

E remata:

- Gostava que me indicassem onde está a subida do preço do petróleo. Cada um que pense por si, mas eu acho que estamos a ser roubados pelos políticos e pelas petrolíferas.

Ah, esqueci-me de dizer que o título do seu e-mail era: “Uma instituição chamada mentira”.

E depois pensei para mim, que nestas coisas de matemáticas ou economias tenho que ir devagar; ora então o petróleo aumentou, é um facto, mas como o dólar se desvalorizou em relação ao euro, outro facto, o petróleo acabou por não aumentar face ao euro. Aumentou para os americanos, não aumentou para os europeus. Simples!

Será que eles, os políticos e, ou, as petrolíferas, ou os dois juntos, que é o mais certo, se aproveitaram da nossa ingenuidade para nos arrear, escondendo-se nessa fabulação esotérica que dá pelo nome de economia?

E fiquei a modos que embaraçado, muito embaraçado com a minha estupidez. Queria-me revoltar mas a estupidez atrofiava-me, pesava-me muito, pesava-me mais do que a revolta. E pensar que através do voto lhes tinha sancionado essa montanha de mentira. Isto está mesmo muito complicado!

Cambaleei para a net, que outro termo mais expressivo para significar o atordoamento estupidificante que ainda me possuía não me ocorre, para saber qual era o IVA da gasolina.

Mas não o devia ter feito, porque em vez de me sossegar mais enfermo fiquei. É que para além do IVA, já de si no máximo dos 21%, havia outro imposto, gordo e feio, que totalmente me siderou, chamado ISP, que encavalitado no primeiro dava à data a módica percentagem de 63,9%, o que significava que em cada cem cêntimos de combustível, 63,9 cêntimos iam directamente para o buraco do governo, que não do estado e que muito menos da nação.

Recuperando da minha estupidez que era demasiado estúpida, vinha-me uma nova inteligência que me fazia reconhecer que o governo, no fundo, acabava sempre por ter razão. De facto o combustível é um luxo, de facto todos os transportes são supérfluos, levar as crianças à escola, conduzir os doentes aos hospitais, abastecer os supermercados de comida, ir para o trabalho, ir para casa, ir, ir, ir que o homem fez-se para ir, pode muito bem ser tudo feito sem consumo de gasolina.

As crianças podem ir de trotineta, que até se divertem muito mais, os adolescentes e mesmo alguns adultos mais desempoeirados de skate, que até é muito mais saudável, os doentes de mula, que até tem a vantagem de ir devagar sem solavancos na calçada, a comida em carroças e para todas as outras necessidades e gostos ainda sobejam um sem número de escolhas, desde o triciclo e a bicicleta, que os há de muitos tamanhos e feitios, até a um infindável número de animais, que basta aparelhar, com a devida precaução da estética e funcionalidade, ao jeito do freguês e conforme o estatuto social, seja patrício ou plebeu, a idade, seja tenro ou esclerótico, o peso, tenha carnes abundantes ou magreza inconveniente, a jornada, seja curta ou cumprida, a ansiedade, com pressa ou sem pressa e o trajecto, seja por terra, ar ou água, por cidade ou por campo.

sábado, 31 de maio de 2008

30.O senhor Nunes

O senhor Nunes tira, num gesto vagaroso, quase elegante, os óculos, se os tiver, não sei se os tem, mas nesta sua congeminação haveria de os tirar, em sinal de reflexão aguçada, e chegar-se para trás, encostando bem a espinha às costas do cadeirão, que isso a ambos há-de ter, espinha e cadeirão, e nesta sua congeminação há-de estar sentado, e olha o tecto no aprofundamento do raciocínio, e por tique, que é capaz de o ter, finge coçar o cocuruto da cabeça como a estimular o avanço célere dos neurónios idiotas, aqueles que produzem ideias sublimes.

Precisa de trepar a ministro e tem que ver como, ou outra ambição, ou compulsão freudiana de provar, alguma coisa a alguém.

E neste esforçado exercício do intelecto lembra-se da moda da gestão por objectivos que por estes tempos de brilhantismo na governação perpassa pelos espíritos políticos mais iluminados do país e exclama, «é isso!» e uma lâmpada acende-se, e um esgar, uma satisfação inebria-o pela descoberta genial, e agora, não vagarosa mas desenvoltamente, enfia os óculos, se os tiver, chega o rabo para a frente no cadeirão, que os tem, e excitado tecla no computador, faz assim um género de estatística preventiva.

Ora se mandar que se descubram tantas infracções, isso corresponde a tantos processos de contra-ordenação, o que equivale a tantas coimas e mais ou menos a tantos processos crime, o que significa fechar tantos estabelecimentos, o que vem a dar meter na prisão tantos criminosos.

O senhor Nunes é primeiro António, António Nunes, inspector-geral da ASAE - Autoridade para a Segurança Alimentar e Económica, instituição recente, criada ao que parece por imperativo da Comunidade Europeia e o dito senhor Nunes faz a propósito questão de deixar bem claro e por isso proclama sem inibição ou gaguez: "A orientação global é dada pela direcção da casa, é unipessoal, sou eu que a dou".

A Asae depressa ganhou fama e proveito pela forma dinâmica e extremosa com que aplicou a nova lei. Os seus funcionários, briosos e viris, de farda e pistola à cinta, passaram a ser notícia constante dos telejornais, irrompendo de surpresa pelos restaurantes e afins, casas de pasto e sucedâneas, tascas, tabernas, baiucas, boticas e o que mais, no cumprimento escrupuloso do seu dever, lançando o pânico em certos e nefastos antros, fazendo correr, fugir e dispersar, hordes de malfeitores, uns ainda caçados e enjaulados, que impunemente envenenavam as populações ingénuas e indefesas.

O senhor Nunes suspende-se na conclusão do seu cálculo, mira-o e admira-o, acha porém o número de prisões ainda baixo para tanta malandragem que sabe existir, que o povo tem esta inclinação prevaricadora e é preciso andar sempre em cima dele e com um pé atrás, e por número tão escasso a sua competência não há-de impressionar, e retoma a partir de cima a descida encadeada dos números para lograr encarceramentos mais significativos. Rejubila-o a estatística conseguida, antes de o ser já o é, proporcional e harmoniosa, verosímil e convincente. «Mas isto tem que ser muito à socapa» previne-se, «não vá o diabo tecê-las, que anda para aí uma legião de fofoqueiros que só dizem mal e que só embaraçam a justiça» acrescenta.

Que o crime alimentar e económico existe, já ele o sabe de sobejo, o que é preciso é desmascará-lo e dar-lhe arrumo, expô-lo à luz do dia nos números que não mentem, e de certeza que sempre haverão mais casos do que aqueles que ele de antemão sentenciou, e caso não os haja deviam haver, e de passagem lembra-se, não sei a que propósito, de um ditado árabe que diz: «bate todos os dias na tua mulher, porque mesmo que não saibas porquê, ela há-de saber».

Ora se há uma polícia tem que haver um crime, assim já pensava a polícia política, porque senão para que é que era preciso a polícia? E agora que se criou a polícia não será dever desta criar o crime?

“Ao fim de toda a lógica, de todas as doutrinas, de todos os gestos, os mais puros, de todas as iniciativas as mais altas, de todos os ideais, de todas as realizações: a polícia”. (Vergílio Ferreira)

Realizado, quer dizer, com aquela sensação de cheiinho, que vem da consciência de uma inteligência superior e de um zelo exemplar, ambos ao serviço do Estado, o senhor Nunes levanta-se a desfrutar do sabor por inteiro do dever cumprido, chega-se à janela que abre de par em par numa largueza de movimento, antevendo a merecida recompensa, já se vê com toda a justiça no acto de posse do ministério, sob as palavras gratificantes do Presidente, «é destes homens que o país precisa para recuperar a confiança do povo nas instituições políticas», e da janela contempla o mundo as seus pés, e neste com especial devoção os restaurantes e afins, casas de pasto e sucedâneas, tascas, tabernas, baiucas, boticas e o que mais, e enche reconfortado os pulmões do fresco ar da manhã que a natureza indistintamente oferece a todos os nascidos.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

29.Respostas de alunos nos seus testes escolares

Eu, Zé, de muitos apelidos, uns de que me orgulho, outros de que me envergonho, declaro por minha honra, que transcrevo tal como recebi, sem traço de cosmética, sem soma ou diminuição de vocábulo ou pontuação, mas exactamente como os meus olhos viram, e assim, originais e incólumes a qualquer tentação de reparo ou correcção, ou outra qualquer modificação, virgens recebidas, virgens entregues, assim as transmito, estas respostas de alunos nos seus testes escolares, corria o ano de 2008 no país Portugal.

História

• A História divide-se em 4: Antiga, Média, Moderna e Momentânea (esta, a dos nossos dias);

• O Hino Nacional Francês chama-se La Mayonèse;

• Tiradentes, depois de morto, foi decapitulado;

• Entres os índios da América, destacam-se os aztecas, os incas, os pirineus, etc;

• No começo os índios eram muito atrazados mas com o tempo foram-se sifilizando;

• Com a morte de Jesus Cristo os apóstolos continuaram a sua carreira;

• Entre os povos orientais os casamentos eram feitos "no escuro" e os noivos só se conheciam na hora h.

Geografia

• A capital de Portugal é Luiz Boa;

• O principal rio nos Estados Unidos é o Mininici;

• A Geografia Humana estuda o homem em que vivemos;

• Na América Central há países como a República do Minicana;

• A Terra é um dos planetas mais conhecidos no mundo;

• As constelações servem para esclarecer a noite;

• As principais cidades da América do Norte são Argentina e Estados Unidos;

Ciências

• Ecologia é o estudo dos ecos, isto é, da ida e vinda dos sons;

• Solo é quando numa orquestra um dos músicos "capricha" sozinho e os outros ficam à escuta;

• Assexuada é a pessoa que não está nem do lado de cá nem do lado de lá;

• Trompa de Eustáquio é o instrumento musical de sopro, inventado pelo grande músico belga Eustáquio, de Bruxelas;

• Newton foi um grande ginecologista e obstetra europeu que regulamentou a lei da gravidez e estudou os ciclos de Ogino-Knaus;

Português

• Parêntesis é o gráu da família que existe entre os pais e filhos, tios e sobrinhos, avós e netos, primos e primas, etc;

• Preposição, conforme diz a palavra pela sua própria entomologia, é aquela que é colocada antes da outra que é mais importante;

• Conjunção é a grafia que se usa quando se quer conjugar um verbo;

• Sujeito é a pessoa com quem a gente fala;

• Concordância é quando nós estamos de acordo com o que o outro disse.

Exames - 2ª Fase

• A febre amarela foi trazida da China por Marco Polo;

• Os ruminantes distinguem-se dos outros animais porque o que comem, comem duas vezes;

• O coração é o único órgão que não deixa de funcionar 24 horas por dia;

• A arquitectura gótica notabilizou-se por fazer edifícios verticais;

• A diferença entre o Romantismo e o Realismo é que os românticos escrevem romances e os realistas nos mostram como está a situação do país;

• As múmias tinham um profundo conhecimento de anatomia;

• Na Grécia a democracia funcionavam muito bem porque os que não estavam de acordo envenenavam-se;

• As plantas distinguem-se dos animais por só respirarem à noite;

• Os estuários e os deltas foram os primitivos habitantes da Mesopotâmia;

• A caixa de previdência assegura o direito à enfermidade colectiva;

• A respiração anaeróbica é a respiração sem ar que não deve passar de três minutos;

• Calor é a quantidade de calorias armazenadas numa unidade de tempo;

• Antes de ser criada a Justiça, o mundo era injusto.

Com os exames nacionais do 9º e do 12º

• Lavoisier foi guilhotinado por ter inventado o oxigénio;

• O nervo óptico transmite ideias luminosas ao cérebro;

• O vento é uma imensa quantidade de ar;

• Terramoto é um pequeno movimento de terras não cultivadas;

• Os antigos egípcios desenvolveram a arte funerária para que os mortos pudessem viver melhor;

• Péricles foi o principal ditador da democracia grega;

• O problema fundamental do terceiro mundo é a superabundância de necessidades;

• O petróleo apareceu há muitos séculos, numa época em que os peixes se afogavam dentro de água;

• A principal função da raíz é enterrar-se;

• O sol dá-nos luz, calor e turistas;

• As aves têm na boca um dente chamado bico;

• A unidade de força é o Newton, que significa a força que se tem de realizar num metro da unidade de tempo, no sentido contrário.

sábado, 24 de maio de 2008

28.Manifesto em defesa da língua portuguesa contra o acordo ortográfico

1 – O uso oral e escrito da língua portuguesa degradou-se a um ponto de aviltamento inaceitável, porque fere irremediavelmente a nossa identidade multissecular e o riquíssimo legado civilizacional e histórico que recebemos e nos cumpre transmitir aos vindouros. Por culpa dos que a falam e escrevem, em particular os meios de comunicação social; mas ao Estado incumbem as maiores responsabilidades porque desagregou o sistema educacional, hoje sem qualidade, nomeadamente impondo programas da disciplina de Português nos graus básico e secundário sem valor científico nem pedagógico e desprezando o valor da História. Se queremos um Portugal condigno no difícil mundo de hoje, impõe-se que para o seu desenvolvimento sob todos os aspectos se ponha termo a esta situação com a maior urgência e lucidez.

2 – A agravar esta situação, sob o falso pretexto pedagógico de que a simplificação e uniformização linguística favoreceriam o combate ao analfabetismo (o que é historicamente errado), e estreitariam os laços culturais (nada o demonstra), lançou-se o chamado Acordo Ortográfico, pretendendo impor uma reforma da maneira de escrever mal concebida, desconchavada, sem critério de rigor, e nas suas prescrições atentatória da essência da língua e do nosso modelo de cultura. Reforma não só desnecessária mas perniciosa e de custos financeiros não calculados. Quando o que se impunha era recompor essa herança e enriquecê-la, atendendo ao princípio da diversidade, um dos vectores da União Europeia. Lamenta-se que as entidades que assim se arrogam autoridade para manipular a língua (sem que para tal gozem de legitimidade ou tenham competência) não tenham ponderado cuidadosamente os pareceres científicos e técnicos, como, por exemplo, o do Prof. Óscar Lopes, e avancem atabalhoadamente sem consultar escritores, cientistas, historiadores e organizações de criação cultural e investigação científica. Não há uma instituição única que possa substituir-se a toda esta comunidade, e só ampla discussão pública poderia justificar a aprovação de orientações a sugerir aos povos de língua portuguesa.

3 – O Ministério da Educação, porque organiza os diferentes graus de ensino, adopta programas das matérias, forma os professores, não pode limitar-se a aceitar injunções sem legitimidade, baseadas em “acordos” mais do que contestáveis. Tem de assumir uma posição clara de respeito pelas correntes de pensamento que representam a continuidade de um património de tanto valor e para ele contribuam com o progresso da língua dentro dos padrões da lógica, da instrumentalidade e do bom gosto. Sem delongas deve repor o estudo da literatura portuguesa na sua dignidade formativa.O Ministério da Cultura pode facilitar os encontros de escritores, linguistas, historiadores e outros criadores de cultura, e o trabalho de reflexão crítica e construtiva no sentido da maior eficácia instrumental e do aperfeiçoamento formal.

4 – O texto do chamado Acordo sofre de inúmeras imprecisões, erros e ambiguidades – não tem condições para servir de base a qualquer proposta normativa. É inaceitável a supressão da acentuação, bem como das impropriamente chamadas consoantes “mudas” – muitas das quais se lêem ou têm valor etimológico indispensável à boa compreensão das palavras. Não faz sentido o carácter facultativo que no texto do Acordo se prevê em numerosos casos, gerando-se a confusão. Convém que se estudem regras claras para a integração das palavras de outras línguas dos PALOP, de Timor e de outras zonas do mundo onde se fala o Português, na grafia da língua portuguesa. A transcrição de palavras de outras línguas e a sua eventual adaptação ao português devem fazer-se segundo as normas científicas internacionais (caso do árabe, por exemplo).

Recusamos deixar-nos enredar em jogos de interesses, que nada leva a crer de proveito para a língua portuguesa. Para o desenvolvimento civilizacional por que os nossos povos anseiam é imperativa a formação de ampla base cultural (e não apenas a erradicação do analfabetismo), solidamente assente na herança que nos coube e construída segundo as linhas mestras do pensamento científico e dos valores da cidadania.

Os signatários: Ana Isabel Buescu - António Emiliano - António Lobo Xavier - Eduardo Lourenço - Helena Buescu - Jorge Morais Barbosa - José Pacheco Pereira - José da Silva Peneda - Laura Bulger - Luís Fagundes Duarte - Maria Alzira Seixo - Mário Cláudio - Miguel Veiga - Paulo Teixeira Pinto - Raul Miguel Rosado Fernandes - Vasco Graça Moura - Vítor Manuel Aguiar e Silva - Vitorino Barbosa de Magalhães Godinho - Zita Seabra.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

27.Cenhora menistra - João Aguiar

A gente vai-se entendendo, com um ou outro sopapo nos professores, sinal apenas de espírito de iniciativa e de saudável energia física.

Vânho com esta agardecer a voça escelencia akela koisa de não ligar puto à hortugrafia nos isames do 9º.anu i de não ter metido nelex aqueles xatus do Camões i do Jil Vissente e de a perova ser bestialmente fássil. Eu já não benefissiei porque akabei a xatisse dos estudos e tou agora num dakeles empregus purreiros oferessidos pelo cenhor menistro da ikonumia, mas a minha irman Katia Vaneça fês u isame i gostou muito. Ela não pressisa de hortugrafia pra nada, já tá a fazer istájio numa kasa de alterne muita fixe, pagam bem i ela nem tem de falar, kuanto mais eskrever.

Também kero agardecer, cenhora menistra, ke os isames do 12º.forão bué da fásseis, cem ninhuma gramatika, purke u meu irmão Xico us fês e kurreram lhe muitabem i ele nem estodou nada todu u anu, a bem dizer, purke já ganha a vidinha komo diller i então não tem tempu pra essas xatisses. Pra ele livrus e gramatika, jamé, jamé. I então eu keru ka cenhora kontinui acim, ke vai muitabem. a) Juzé da Cilva, i.v.l. (Inginheiro Verdadeiramente Lissenssiado )

Este documento, comovente e palpitante, foi-me cedido por um parente em vigésimo segundo grau de um alto funcionário do nosso Ministério da Educação, depois de um jantar muito bem regado, quando ele já estava claramente com os copos e balbuciava uma velha canção do desaparecido Hervé Villard: “Nu niron plus jamé”…(ortografia francesa modernizada e melhorada pelos do nosso sobredito Ministério; em francês não-corrigido, seria “Nous n’irons plus jamais”)

Interrompendo a cantoria e colocando nas minhas mãos a carta acima transcrita, ele disse-me, entre soluços: “Leia, meu amigo! Veja como esta nossa ministra é popular, como a juventude a estima e apoia! E a juventude é a promessa do futuro! Hic!”. Eu li a carta e pensei logo que devia dá-la ao conhecimento dos leitores. Porque é edificante.

Segundo o mesmo parente em vigésimo segundo grau me confidenciou, o jovem autor da tocante missiva, além de preencher, como ele próprio informa, um daqueles postos de trabalho prometidos em boa hora pelo senhor ministro Manuel Pinho, vai também integrar uma comissão que deverá promover (segundo ouvi na TV) maiores contactos entre professores e alunos, uma medida destinada, especificamente, a evitar que os segundos agridam os primeiros. A coisa é assim: parece que se multiplicam, nas escolas, os casos de indisciplina e de agressões a docentes. Um espírito tacanho pensaria logo que se impunha um reforço da disciplina e da autoridade da escola, já que, por exemplo, hoje em dia é legalmente muito difícil, e sobretudo moroso, punir um aluno insolente ou violento. Mas isto, repito, é o pensamento de um espírito tacanho. O que é preciso (e felizmente houve quem o entendesse) é multiplicar os contactos entre alunos e professores. Se não der resultado, servirá, pelo menos, para melhorar e aumentar as oportunidades de aqueles baterem nestes – fora do tempo de aula, está bem de ver, para não prejudicar o ensino.

Lendo todo este arrazoado, alguém dirá, criticamente: “Pois, pois! Ele está a defender a sua classe!”. A quem o diga, respondo (ou repito, já nem sei bem) que nunca na minha vida fui professor, nem perto disso. Acrescento que estou muito consciente de que muitos, muitos dos professores do nosso país se encontram na profissão errada (tal como muitos, muitos dos nossos actuais senhores ministros se encontram na função errada: adiante, não falemos de mais misérias. Jamé.).

No entanto continua a ser também verdade que há professores magníficos. Continua a ser verdade que o Ministério tomou uma decisão anticonstitucional, como declarada pelo respectivo Tribunal, que com essa decisão prejudicou vários alunos e que não parece nada preocupado com isso; continua a ser verdade que a tão falada TLEBS não passa de uma tontice inútil destinada a confundir o que deveria ser claro; continua a ser verdade que a concepção adoptada, não só nos exames como na prática do ensino, em relação à ortografia em particular e ao Português em geral, é um atentado contra a inteligência, contra a nossa língua e contra a nossa cultura, cometido por um departamento estatal chamado Ministério da Educação.

Vejo-me obrigado, a tal propósito, a recordar uma história já contada: aquela do professor de Física, dos tempos do antigamente (anteriores até, julgo, ao Estado Novo) que dava pontuação zero ao aluno que, num teste, escrevesse “trezentas gramas” em vez de “trezentos gramas”, porque, explicava, com inteira razão, trezentas gramas são trezentas plantazinhas que, juntas, formam um gramado. Temos aqui duas concepções opostas: uma, a da educação integrada, em que os professores do ramo científico querem e sabem corrigir erros de Português ou de História; outra, a actual, promotora da geral ignorância. em que não importa nada escrever que dôes e dôes são cuatro, o que é preciso é que a gentessentenda.

E a gente vai-se entendendo com um ou outro sopapo nos professores, sinal apenas de um certo espírito de iniciativa e de uma saudável energia física. Quem, no actual sistema, poderá pensar que isso é negativo?

Como diria o senhor ministro Mário Lino, Jamé.

sábado, 17 de maio de 2008

26.O esforço e o mérito

Conto-lhe...

O Marques e o Silva são dois carpinteiros que trabalham na mesma fábrica de móveis por medida. Uma quarta-feira o patrão chamou os dois e disse-lhes: «Preciso de entregar duas estantes deste Sábado a oito dias numa loja que vai abrir no centro comercial nesse fim-de-semana. Sei que o prazo é apertado, mas como fiz um bom negócio com o lojista estou disposto a dar um prémio a cada um de vocês se acabarem a obra no prazo acordado». E assim dito mandou-os trabalhar.

O Marques é trabalhador, não recua perante os desafios, aplica-se e esforça-se. O Silva tem um jeito especial, dizem que é dom de família, pois já o seu pai e avô tinham a mesma arte.

O Marques desde essa quarta-feira trabalhou a fio, com valentia e empenho, dia e noite, fim-de-semana, deu o melhor de si, o que tinha e o que não tinha, mas a estante era caprichosa e só conseguiu acabá-la dois dias depois da abertura da loja. Foi repreendido. Não teve prémio.

Ao Silva bastou-lhe a jorna diária, dispôs das noites e passou como de costume os fins-de-semana com a família. Para ele foi mais um trabalho de rotina, a correr de feição, sem exigência de qualquer esforço especial. No Sábado a estante estava pronta. Foi elogiado. Ganhou o prémio.

E o Zé escuta, estica as pernas, cruza os braços, inteira-se.

Segundo a lógica do custo-proveito nada a comentar, nada de extraordinário à face da terra e debaixo do sol. O Marques não conseguiu, não teve o mérito de acabar o trabalho a tempo, não teve prémio. O Silva conseguiu, teve o mérito de acabar o trabalho a tempo, teve prémio.

E a história, verídica, igual a milhares de histórias que vão acontecendo todos os dias por essas empresas fora, poderia acabar aqui, ou melhor, não chegaria sequer a ser história, se não estivesse errada e gravemente errada, e o erro é de análise e apreciação, por razão de uma subversão de valores em que se mudou a posição do homem de sujeito para objecto.

E o Zé insurge-se, descruza os braços, recolhe as pernas, chega o rabo para trás, arrazoa.

Marques e Silva não são os nomes de duas máquinas da fábrica de móveis por medida, são os nomes de duas pessoas deste planeta, deste mundo que nos sofre, feitos da mesma matéria e espírito que todos nós, e a tomada de consciência deste facto, porque por mais incrível que pareça é preciso acordar para a consciência deste facto, altera dramaticamente toda a análise e apreciação, endireita olhos e razão, obrigando a repor a justa ordem dos valores e posições, resgatando o homem de objecto para sujeito, e então, tudo passa a estar profundamente errado, porquanto Marques e Silva já não mais máquinas, mas pessoas e como estas e não como aquelas, deverão ser avaliadas.

O Marques esforçou-se muito, e para ele, que outra referência não se adequa, tudo o que podia, enquanto o Silva esforçou-se pouco, e para ele, que outra referência também não serve, nada do que podia. Foi premiado o resultado, não foi reconhecido o esforço.

E o Zé disserta, levanta-se, gesticula a compor as ideias, proclama…

Nesta cultura deformada que construímos contra o homem, paradoxo do homem, o mérito confunde-se com o resultado, o que não produz resultado não tem mérito. Houve uma substituição, diria melhor, uma alienação do mérito do esforço para o mérito do resultado. É consequência desta obsessão compulsiva, peste negra da modernidade, que viver é produzir, que é sempre preciso produzir alguma coisa, de material, de palpável, bem entendido, e que sem produzir não há vida… maior disparate do que este não é fácil enxergar. Mas não derivemos.

Os dois carpinteiros nasceram desiguais, e ainda bem se não seriam autómatos, e é essa desigualdade que lhes confere a cada um, personalidade única e irrepetível, e tinham e têm e terão sempre, características diferentes, características que nunca estiveram nem estarão nas suas mãos modificar. Os dons não se inventam, podem desenvolver-se, mas não se criam. Já o esforço sim, pode inventar-se, criar-se, está ao alcance de todos, depende exclusivamente da vontade.

… e vai daí, dá exemplo artístico.

Imagine-se, à laia de caricatura, que sendo eu patrão, da política ou da indústria, obrigava, ou desafiava, para ser menos drástico, todos os homens a compor a quinta sinfonia, ou a escrever os Lusíadas, ou a pintar a Mona Lisa, e isto no mesmo prazo. Tinha o mérito, para usar a palavra do dia, de ser internado.

E o Zé revolta-se, passeia pela sala, impugna.

O verdadeiro mérito está no esforço, não no resultado, mede-se pelo esforço, não pelo resultado. Mérito sem esforço, não é verdadeiro mérito. A medida do homem é o esforço, a medida da máquina é o resultado.

Os homens nascem todos desiguais, em características, e todos iguais, em direitos, sendo este segundo axioma de carácter normativo, isto é, postula como deveria ser, e não positivo, isto é, o que realmente ainda é, a verdade nua e crua da desigualdade dos direitos. Se eu avaliar todos os homens pela mesma bitola estou, ao contrário, a considerar que nasceram todos iguais e, portanto, e também ao contrário, a conferir-lhes direitos desiguais. Inverti tudo!

Quais são os indicadores de avaliação? São iguais para homens desiguais? Enquanto posso fazer as máquinas nascerem iguais para daí obter iguais resultados, não posso, nem fazer os homens nascerem iguais, nem tratá-los como se fossem iguais. Se o fizer deixo de os considerar sujeitos, mas objectos.

O que é que se deve premiar, aquilo com que nascemos e que não depende de nós modificar, ou aquilo que pela nossa liberdade e vontade somos capazes de transformar? O verdadeiro mérito estará no resultado obtido, ou no esforço que investimos para o obter?

O Zé escarnece, senta-se, vai para a política, casca forte.

É claro que a pensar assim entro em rota de colisão com o capitalismo, subverto o primado do capital sobre o trabalho, sou apóstata da cultura dominante economicista que reduz o homem a objecto numa equação contabilística de custo-proveito, mas ainda bem, porque como Eugène Ionesco disse «pensar contra o nosso tempo é um acto de heroísmo, mas dizê-lo é um acto de loucura». Sou então louco porque recuso a conversão do homem em mais um factor de produção.

Que vivemos numa ditadura económica, melhor dizendo, que vivemos numa ditadura, e esta correcção porque a economia é virtual, só lembrada e evocada como pretexto político do poder, é um facto, que mesmo os mais torcidos reconhecem, e que essa tirania, imposta e consentida, fizeram do homem um objecto, é facto maior.

Não se estimula e reconhece o mérito do esforço, incentiva-se, melhor, espicaça-se, o mérito do resultado, com ou sem esforço. O que interessa é sempre o resultado e isto é verdade nas empresas mas ainda mais verdade é na política. É já uma forma de pensar que ultrapassou a própria economia e deitou raízes na moral.

E o Zé alastra, mantém-se espraiado no sofá, vai da política para a cultura, lamenta-se

Por isso a meritocracia, nome bonito cheio de promessas, apesar das sedas com que se adorna é extremamente perigosa, porque se assentar exclusivamente no resultado e não no esforço vai claramente contra o homem. Por isso também todos os sistemas de prémios baseados unicamente nos resultados, não obstante poderem brilhar e ofuscar, qual fogo de artifício instantâneo, depressa se apagarão nas cinzas do desengano, dando pelo meio cabo do homem, das organizações e das comunidades.

Aculturámo-nos à cultura do mérito, mas a uma nova cultura do mérito, ou melhor dizendo, a uma cultura de um novo mérito, ou verdadeiramente falso mérito, porque desligado do esforço, e a este novo mérito, o mérito que vem de fora, do resultado, da conveniência, da posição ou situação, ligámos o prémio e mais uma cultura, a cultura do prémio. Mas onde ficou a verdadeira cultura, a cultura do homem? Tudo isto por imperativos economicistas. O homem vale pelo que produz e produz em quantidade, medível em alguma unidade de medida e espera-se, exige-se, a evolução e a evolução é produzir sempre mais, para ter mais mérito e arrecadar mais prémios, sejam materiais, sejam outros.

… e volta aos exemplos esmerados.

Aculturámo-nos a uma turquês gigante com dois tentáculos que comprimem o homem. Por cima um braço que se divide em dois, a economia, ou finanças, ou outra coisa mesma, é um, a competitividade, a rivalidade, eu tenho que fazer mais, ser maior, é outro. Por baixo um braço que imita em dois o primeiro, o consumismo e o supérfluo, é um, a vaidade e a leviandade, é outro. E a turquês aperta e o homem esborracha-se.

E o Zé remata, endireita-se, ergue o braço, desafia.

Se porém quisermos criar outra cultura, assente no homem, sem hipocrisia nem mentira, se quisermos construir outra civilização, para lucro do homem e não do capital, o que sempre teremos de fazer, mais tarde ou mais cedo, pela reforma ou pela revolução, então a conversa e a história seriam outras.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

25.Por onde anda a Democracia? Mário Crespo

Pronto! Finalmente descobrimos aquilo de que Portugal realmente precisa: uma nova frota de jactos executivos para transporte de governantes. Afinal, o que é preciso não são os 150 mil empregos que José Sócrates anda a tentar esgravatar nos desertos em que Portugal se vai transformando. Tão-pouco precisamos de leis claras que impeçam que propriedade pública transite directamente para o sector privado sem passar pela Partida no soturno jogo do Monopólio de pedintes e espoliadores em que Portugal se tornou. Não precisamos de nada disso. Precisamos, diz-nos o Presidente da República, de trocar de jactos porque aviões executivos "assim" como aqueles que temos já não há "nem na Europa nem em África". Cavaco Silva percebe, e obviamente gosta, de aviões executivos. Foi ele, quando chefiava o seu segundo governo, quem comprou com fundos comunitários a actual frota de Falcon em que os nossos governantes se deslocam.

Voei uma vez num jacto executivo. Em 1984 andei num avião presidencial em Moçambique. Samora Machel, em cuja capital se morria à fome, tinha, também, uma paixão por jactos privados que acabaria por lhe ser fatal. Quando morreu a bordo de um deles tinha três na sua frota. Um quadrimotor Ilyushin 62 de longo curso, versão presidencial, o malogrado Antonov-6, e um lindíssimo bimotor a jacto British Aerospace 800B, novinho em folha. Tive a sorte de ter sido nesse que voei com o então Ministro dos Estrangeiros Jaime Gama numa viagem entre Maputo e Cabora Bassa. Era uma aeronave fantástica. Um terço da cabina era uma magnífica casa de banho. O resto era de um requinte de decoração notável. Por exemplo, havia um pequeno armário onde se metia um assistente de bordo magro, muito esguio que, num prodígio de contorcionismo, fez surgir durante o voo minúsculos banquetes de tapas variadíssimas, com sandes de beluga e rolinhos de salmão fumado que deglutimos entre golinhos de Clicquot Ponsardin. Depois de nos mimar, como por magia, desaparecia no seu armário. Na altura fiz uma reportagem em que descrevi aquele luxo como "obsceno". Fiz nesse trabalho a comparação com Portugal, que estava numa craveira de desenvolvimento totalmente diferente da de Moçambique, e não tinha jactos executivos do Estado para servir governantes.

Nesta fase, metade dos rendimentos dos portugueses está a ser retida por impostos. Encerram-se maternidades, escolas e serviços de urgência. O Presidente da República inaugura unidades de saúde privadas de luxo e aproveita para reiterar um insuspeitado direito de todos os portugueses a um sistema público de saúde. Numa altura destas, comprar jactos executivos é tão obsceno como o foi nos dias de Samora Machel. Este irrealismo brutalizado com que os nossos governantes eleitos afrontam a carência em que vivemos ultraja quem no seu quotidiano comuta num transporte público apinhado, pela Segunda Circular ou Camarate, para lhe ver passar por cima um jacto executivo com governantes cujo dia a dia decorre a quilómetros das suas dificuldades, entre tapas de caviar e rolinhos de salmão. Claro que há alternativas que vão desde fretar aviões das companhias nacionais até, pura e simplesmente, cingirem-se aos voos regulares. Há governantes de países em muito melhores condições que o fazem por uma questão de pudor que a classe que dirige Portugal parece não ter.

Vi o majestático François Miterrand ir sempre a Washington na Air France. Não é uma questão de soberania ter o melhor jacto executivo do Mundo. É só falta de bom senso. E não venham com a história que é mesquinhez falar disto. É de um pato-bravismo intolerável exigir ao país mais sacrifícios para que os nossos governantes andem de jacto executivo. Nós granjearíamos muito mais respeito internacional chegando a cimeiras em voos de carreira do que a bordo de um qualquer prodígio tecnológico caríssimo para o qual todo o Mundo sabe que não temos dinheiro.

sábado, 10 de maio de 2008

24.Não mintam mais aos nossos filhos!

Meu caro Zé:

Fazendo minhas as suas palavras, “esta é a minha pequeníssima contribuição, mas já é alguma, para o movimento de indignação nacional”, venho enviar-lhe um texto do Miguel Mattos Chaves, que entendo da maior importância e oportunidade por estes finais de Abril. Antes disso, porém, gostaria de à laia de preâmbulo deixar duas notas.

A primeira refere-se à construção da História, não a dos factos genuínos realmente acontecidos, mas a da versão falseada que sobre eles se edificou. Como sabemos a história é dos vencedores e não dos vencidos, destes não reza a história, como é comum dizer-se, quer isto significar, que os vencedores materiais, de factu e com toda a probabilidade não de jure, forjam a contorção que mais lhes convém para justificarem a si próprios e ao mundo o porquê dos actos empreendidos, a qual versão passa a ser desde então a oficial. E quanto mais a vitória é imoral ou injusta, caso houvesse lugar a aplicar tão cândidos conceitos no contexto do poder e da força, maior é a mentira dos vencedores. Sempre foi assim e continuará a ser. Já na antiguidade dizia Breno, célebre caudilho gaulês que derrotou e saqueou Roma no ano de 390 a.C., vae victis! Ai dos vencidos!

É preciso que passe a geração dos vencedores e fazedores da História para que aos poucos e poucos a verdade aprisionada comece a libertar-se. Muitas vezes é necessária mais do que uma geração, tão enraizada na cultura oficial foi a mentira, e é sempre dramática a revelação da realidade porque fatalmente acabará por opor pais e filhos, os pais porque autores ou cúmplices de um legado falso, os filhos porque descobrem ser vítimas de um embuste.

Ora desta falsificação da História não se escaparam nem Portugal nem os portugueses no que se refere quer ao 25 de Abril, quer ao processo de descolonização. A história que nos tem sido contada pelos seus protagonistas e afins, geração ainda viva, está cheia de mentiras, pelas razões óbvias de tentar esconder a verdade sobre si próprios, de quem eram, e de justificar à luz de ideais não existentes, porque o fizeram.

Desta geração, há uns que viveram a História e conhecem a verdade, mas não têm assento, nem voz, há outros que também a viveram e torcem a verdade, por exclusivas razões de má consciência ou de outra forma perderiam respeito por si próprios, e há muitos outros que não sabendo minimamente do que falam, ou papagueiam o discurso disciplinado do politicamente correcto, ou ainda, por maior zelo de conveniência, mais inventam. Que os segundos tenham mentido a si próprios e à sua geração é grave, que os terceiros, meros fantoches daqueles, os imitem na mentira, continua a ser grave, mas agora que ambos mintam descaradamente aos seus filhos, isso já é intolerável.

O mal está feito, em muitos casos irreparável, o tempo não retrocede, a história é assim, não há uma história perfeita, os vencedores mentiram, esconderam-se na falsidade, não tiveram a coragem da verdade, foram cobardes, hoje poderão não ter ainda a bravura do arrependimento e da confissão, o homem é fraco, mas há uma coragem mínima que lhes é exigida, não mentirem mais aos seus e aos nossos filhos. Se não a tiveram para si que a tenham pelo menos para os seus filhos! Chega de história política, é tempo da verdadeira História.

Por tudo isto o texto do Miguel Mattos Chaves é uma lufada de ar fresco da verdade da história.

E termino aqui a primeira nota, longa, mas necessária.

Quanto à segunda é uma precaução que infelizmente se justifica na previsão da fuga de certos leitores facciosos, intelectualmente desonestos, que não tendo argumento que pese procuram desviar as atenções para o lugar comum dos rótulos ideológicos apressados. São estes os caciques que depauperados de toda a imaginação, enchem a boca das palavras, reaccionário, fachista, colonialista etc.

Mas desenganem-se tais enganadores, pois provavelmente sou na prática da vida mais apologista da autodeterminação dos povos, que outra coisa não poderia patrocinar em coerência com a defesa dos direitos humanos elementares de que me tenho constituído acérrimo combatente, do que muitos daqueles serão mesmo em teoria.

E por isso podem pois esses senhores abster-se dessas fabulações descabidas.

Está assim desfeita a previsível refutação porquanto não é nada disso que se trata mas de repor a verdade histórica das intenções e dos factos. Apresento, então, sem mais demoras o texto do Miguel Mattos Chaves.

Um abraço, António.

O MPLA já não tinha ninguém em armas, no terreno.
Miguel Mattos Chaves

A situação do MPLA no 25 de Abril era a de movimento político pois já não tinha guerrilheiros armados e organizados. Estava reduzido a quadros políticos, a maior parte dos quais fora de Angola, rodeados de mordomias e benesses.

Sou Português e envergonho-me do que se passou depois do 25 de Abril de 1974 em Angola. Até hoje mantive o silêncio sobre o que se passou em Angola, onde prestei Serviço Militar no período de 1973 a 1975. Mas hoje… após ver o que está abaixo escrito, em entrevista… não posso mais ficar calado.

Seria uma Traição à memória de centenas de milhares de civis e militares, negros e brancos, que morreram no período pós-25 de Abril de 1974, em Angola. Traição, tanto maior quanto o branqueamento que o entrevistado pretendeu fazer sobre o que aconteceu e branqueamento perante a real situação no terreno da Província de Angola.

Vamos a factos:

1 - Desde 1968 que não havia confrontos, dignos desse nome, na província entre as tropas portuguesas e os movimentos terroristas, depois ditos de libertação;

2 - O MPLA já não tinha ninguém em armas, no terreno. A situação do MPLA no 25 de Abril era a de movimento político pois já não tinha guerrilheiros armados e organizados. Estava reduzido a quadros políticos, a maior parte dos quais fora de Angola, rodeados de mordomias e benesses;

3 - Este movimento reorganizou-se por força das sucessivas traições cometidas após o 25 de Abril, patrocinadas por Oficiais Militares Portugueses do Quartel General que lhes forneceram equipamento e armamento e instrução. A sua base de recrutamento foi a população jovem dos Musseques de Luanda, principalmente.

4 - O oficial que mais responsabilidades teve no processo foi o Almirante Rosa Coutinho, pois foi na sua época que o MPLA conseguiu o apoio e a logística suficientes, para que conseguisse por volta de Julho/Agosto de 1975, "correr de Luanda" com os outros movimentos (FNLA e UNITA). O "Almirante Vermelho", mais o Pezarat Correia e outros que tais do QG, que deviam ter sido julgados pelo crime de Alta Traição à Pátria, foram quem patrocinou tudo aquilo que tive de aturar e tentar minorar, juntamente com os meus homens, na cidade de Luanda. Houve noites em que tivemos de acartar mortos dos Musseques para cima das Berliets. Tivemos que defender casas particulares, de escoltar civis até ao aeroporto... etc...etc...

5 - Andei em patrulhamentos com os 3 Movimentos, falei com os seus soldados e oficiais, e sei do que falo!

6 - Dos 3 movimentos: O MPLA - era constituído por soldados e oficiais recrutados à pressa nos Musseques e armados pelos ditos Oficiais do QG (dito português); Mal sabiam pegar nas armas e disciplina… nem sabiam o que era; O FNLA - era constituído por soldados Catangueses, que falavam correctamente o Francês. Alguns…digo bem, alguns, dos oficiais sabiam falar português; A UNITA - era constituída por soldados e oficiais disciplinados e com uma hierarquia copiada das nossas forças armadas.

7 - Repito, andei com os TRÊS Movimentos nas viaturas que eu comandava, em acções de patrulhamento em Luanda.

8 - O Dr. Jonas Savimbi tinha sido convidado em 1973 para Governador da Província de Sá da Bandeira pelo Governo chefiado pelo Prof. Doutor Marcelo Caetano. Não aceitou pois preferia ser Secretário Provincial numa de duas pastas: Justiça ou Educação. A UNITA fazia de tampão e colaborava com as forças armadas portuguesas, face a tentativas de infiltração da FNLA.

9 - O FNLA tinha dois BI-GRUPOS, no território. A base do Canacassala, ao pé de Nambuangongo, estava de há muito abandonada e desactivada (desde 1970, segundo informações dos homens da JAEA e de outros homens no terreno (não identifico pois não confio no entrevistado e não sei se estes estão ainda vivos);

10 - Estatísticas da Região Militar de Angola: 80% dos mortos entre 1961 e 1975 foram desastres de viação; apenas 20% foram mortos em combate. Sucede que só tinham direito a pensão de sobrevivência as famílias dos militares mortos em combate. Logo para não prejudicar as famílias eram os relatórios fechados com a aposição de morto em combate. No meu próprio Batalhão tivemos 8 mortos. TODOS em desastres de viação. No relatório: mortos em combate... A GUERRA em ANGOLA TINHA ACABADO.

11 - Vamos agora ao movimento dos capitães de que V.Exª devia TER VERGONHA de ter pertencido: 3 reivindicações dão origem ao Movimento dos pretensos "libertadores":

(A) Melhores salários a pagar a quem estivesse em Z.O. a 100% (Zona Operacional mais perigosa)

(B) Reequipamento em material de guerra e viaturas, das tropas em missão de soberania (citei)

(C) Que os Oficiais do Quadro de Complemento (MILICIANOS como eu) não tivessem acesso à carreira de Oficial do Quadro Permanente.

E foram estes os "NOBRES" motivos do Movimento dos mentecaptos que deram cabo de Portugal, de Angola, de Moçambique da Guiné, etc… e que são os responsáveis por milhares de mortes nas ex-províncias ultramarinas; são os responsáveis por milhares de famílias que ficaram sem os seus haveres; são os responsáveis por 800.000 portugueses, negros e brancos, terem de fugir das suas casas e se virem espoliados dos seus bens; são os responsáveis por milhares de soldados negros, que serviram sob a sua bandeira: a Portuguesa, terem sido fuzilados após a independência desses territórios, após a fuga dos "Libertadores"; são os responsáveis pelo abandono de Timor e pelo genocídio que em seguida se deu no território, etc... etc... Por muito menos teriam sido (por exemplo nos EUA), julgados e condenados à morte, por conivência em Genocídios ou pelo crime de Alta Traição. E foram em Junho de 1972 para o Terreiro do Paço em manifestação fardada, aproveitando as fraquezas e hesitações do Prof Marcelo Caetano; Fraca figura. Fracos dirigentes…fazem fraca… a forte gente. E, mais uma vez na nossa história, assim foi!

12 - Como essas reivindicações não podiam ser todas satisfeitas de repente, e como não lhes foi dada atenção face ao impedir os Oficiais Milicianos de acederem ao Quadro Permanente, começaram a conspirar e desabaram no 25 de Abril. Reivindicação mais corporativa que esta não conheço.

13 - A partir de 1973 são manipulados (esses inteligentes capitães e seus idiotas superiores aliados) pelo PCP. Depois foi o que se viu… Pensavam que sabiam… os coitados...

14 - O Episódio da Vila Alice! Senhor não diga asneiras! Aliás todo o seu depoimento é vergonhoso, bem digno dos "inteligentes do 25 de Abril". O Alferes da Polícia Militar, O Furriel da Polícia Militar e os dois soldados da viatura, foram aprisionados pelos esbirros do MPLA, só possível pela conivência da desordem reinante em Luanda e pela cumplicidade activa dos Oficiais do Quartel General. De imediato o Batalhão de Comandos (estacionado no Grafanil) teve conhecimento, e dois outros batalhões de infantaria, entre os quais o meu, se mobilizaram por ordem dos seus comandantes, que... NÃO alinhavam com os MFosos (os do MFA). De imediato se montou uma operação coordenada de cerco à Vila Alice (para os que não sabem a Vila Alice era o Quartel General do MPLA) - (SEM O CONHECIMENTO DO QG português) - (Está tudo documentado pela TVE, pois os documentos portugueses já devem ter desaparecido) e o Oficial, o Furriel e os Soldados foram resgatados (o Alferes com ferimentos numa perna e num braço foi levado para o HMP de Luanda, onde foi tratado).

15 - Foram mortos 27 homens do MPLA. O resto foi preso "à chapada". Foram desarmados e aprisionados pelas forças portuguesas no terreno (das quais eu, COM MUITA HONRA, fazia parte ... PERCEBEU?).

16 - Comentário do Jornalista da TVE: como é que os Oficiais Portugueses dizem que perderam a Guerra em Angola, depois do que aconteceu hoje? Sem comentários...

17 - Os Comandantes e restantes Militares do MPLA foram soltos por pressões dos Altos Comandos do Q.G. Senão... teria acabado ali o MPLA. PERCEBEU?

Peço desculpa do tom agressivo com que escrevi estas linhas. Mas estou farto de mentiras acerca de coisas e factos em que participei activamente. Estou FARTO DE PESSOAS QUE TRAÍRAM A FARDA DAS FORÇAS ARMADAS e A BANDEIRA de PORTUGAL. Não revelo Nomes de pessoas, pois não sei se ainda estão vivas. E com gente desta, MENTIROSA, VINGATIVA, nunca se sabe.

Por mim não tenho medo. O meu nome é Miguel Mattos Chaves, sou Português e envergonho-me do que se passou depois do 25 de Abril de 1974 em Angola. Por isso tenho estado calado. Mas se calhar está na hora de falar mais e denunciar os Traidores, Cobardes e Mentirosos. Se calhar está na hora de divulgar os nomes dos traidores… Bem hajam por acolherem este meu desabafo. ESTOU a ficar FARTO de ESTAR CALADO...


Estava de pé, e ela sentada, contava-lhe factos políticos históricos, e ela jovem, vinte e poucos, cara expressiva, modos despachados, esperta mas pura, resposta pronta nem sempre pensada, fitava-me presa e desconcertada, eram tantas as surpresas sobre o que lhe tinham dito e falado, olhos vivos, arregalados, e interrompia-me como já o fizera amiúde e de seu modo impulsivo e dizia-me «já há tantas associações por isto e por aquilo, porque não criar uma Associação para a Defesa da História?» e interrompi-me, agora eu, suspenso naquela ideia original, que nunca me atravessara, tão oportuna e necessária para este país, para esta geração e neste tempo, revirei-a, meditei-a por instantes e como quem lhe passa pelas mãos uma causa que não pode segurar respondi-lhe: «realmente é uma excelente ideia, mas eu já tenho tanta coisa que não posso, pode ser que alguém se lembre e eu adiro».

Chama-se Raquel. São estes filhos que um dia haverão de repor a verdade.