sábado, 28 de junho de 2008

38.A quinta qualidade da inconsciência de o ser (3)

Há uma quinta qualidade curiosa que se junta às quatro primeiras na formação do carácter do vilão. É a inconsciência de o ser. O vilão tem esta característica peculiar que é a de não ter consciência de que é vilão. Quando se olha empertigado ao espelho só se vê estrela de telenovela, não vê nem o carácter, nem as qualidades e muito menos as afilhadas, só vê estrela! Espelho mágico, diz-me qual é entre todos os belos o mais belo?

Paradoxo interessante de ser tão vilão e não saber que se é, de ter tantas máculas e não saber que se tem, o que se explica por um fenómeno chamado perda de lucidez e que ocorre quando entra no sistema ou sobe ao poder. Ele até pode não ser um mentiroso compulsivo, ou um corrupto arreigado, ou um incompetente inveterado, ou um cobarde endémico, mas torna-se nisso tudo quando entra no sistema ou sobe ao poder, e quando os outros, os de fora ou de baixo, o chamam de vilão, falho de carácter e farto de pecados, fica muito indignado e ofendido, como se o difamassem injustamente, quando apenas, esses sim, são exemplo de lucidez, pois o facto de o rei ir em pelota não lhes acanha a vista. Então a culpa é do sistema? Não, a culpa é do vilão, legião, que faz o sistema que o faz a si, aconchega o corpo na cama que o há-de aconchegar, num jogo voluntarioso de promiscuidades perpétuo.

Se um dia porém o apanharmos de parte, o subtrairmos às más influências, no recato de um sofá e de uma lareira, onde não haja espelhos, ou de uma mesa recôndita num café discreto e sossegado, onde não hajam mirones, e ele se sinta simples, anónimo, sem ter que provar ao progenitor, mentor, ou estupor, até vai parecer uma pessoa normal, com laivos de bom senso, ideias razoáveis, sentimentos equilibrados, mas depois, logo que se escorra e se enfie, se apadrinhe e se promíscua, esquece-se de tudo completamente, muda de personalidade e volta à vida, ao carácter, às qualidades e às afilhadas do vilão.
Era preciso trazê-lo sempre à trela, nos bons princípios e convivências, afastá-lo das más companhias, que são tentação e perdição, mas convenhamos, que sendo já um homenzinho não só pareceria mal como cada um de nós já tem os seus que cuidar.

A questão é que a inconsciência, pela perda de lucidez, a ninguém ilibe e muito menos ao homem público; a inconsciência é a irresponsabilidade. O homem quer-se responsável, condição básica da sua racionalidade e ao político são exigidas, razão e responsabilidade acrescidas.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

37.As quatro qualidades do vilão e o cortejo de afilhadas (2)

O vilão compõe o seu carácter de quatro qualidades principais e um cortejo de afilhadas.

É mentiroso, mas de uma maneira enviusada – nem na mentira usa o olhar de frente, mente de lado – conforme as voltas e reviravoltas a dar para sair do labirinto onde se enfiou; rebuscada – imaginação e pretextos não escasseiam – conforme a largura e comprimento da manobra necessária ao engano; alternante – às vezes troca tanto que se troca - conforme a novidade da circunstância e a memória dos fregueses. No cortejo do mentiroso atropelam-se excitadas, a falsidade, a hipocrisia, o cinismo, a aldrabice, a intrujice, a torpeza, o despudor e o descaramento, estes vão nus.

É corrupto, não sagra o princípio, não absolutiza o valor, mas vende-se ao interesse e relativiza a verdade. É de circunstância, nem preto, nem branco, a modos que cinzento escorregadio, é uma cana ao vento. Na comitiva do corrupto apinham-se histéricas, a vigarice, a trafulhice, a falcatrua, a trapaça, o logro, o embuste, a burla e a fraude. São tantas que perde-se-lhes a cauda.

(Se falho de musa adjectivante, acendo a televisão, olho para eles, e logo a inspiração vem a golfadas.)

É incompetente, não sabe fazer, nunca fez, chegou lá por portas travessas, compadrios, clubes e derivados, e por lá se mantém graças a uma coisa que se chama confiança política e que em linguagem comum, simples, terra a terra, significa pacto de malfeitores – também há a expressão popular lei da rolha, ou para a cosa nostra, lei da omerta -. Na corte do incompetente banqueteiam-se impávidos, os básicos, os nabos, os broncos, os toscos, os empatas e os penduras como figurinhas de primeiro plano.

É cobarde, pois tudo o que faz, que não faz, é politicamente correcto e não sai como a mula doméstica da correnteza dos varais sob pena de, sendo incorrecto ou descabido, ver-se flagelado, primeira instância, ou expelido sem recurso, pelo sistema, que tem um pavor de morte destas desestabilizações anti-democráticas, que a liberdade é uniforme. No séquito do cobarde disfarçam-se medrosos, os esguios e os escorregadios, os untuosos, os atados, os moles, os frouxos e a fechar os maricas.

sábado, 21 de junho de 2008

36.O vilão é uma legião (1)

O vilão é uma legião, já o fora o diabo e os demónios, compridíssima e caleidoscópica, de inúmeras caras, desde a mais esbranquiçada, falta-lhe o sangue e a gana, à vermelhona, transbordando de humores, passando pela rosácea, aduladora ou manteigueira. Ao natural são todas insanas, mas tratadas não se descortina a treta, escondem-na na cosmética, nos liftings e sobretudo nas máscaras, mais práticas, facilmente descartáveis.

De resto, uma das particularidades do vilão é esconder-se e para isso reportório e artimanha não lhe faltam. Esconde-se atrás da política, da palavra e da promessa, esconde-se atrás do partido, esconde-se atrás da instituição e do cargo, esconde-se atrás da crise e destas vão-se inventando na variedade e gravidade recomendáveis, conforme o desenrasque urgir e a ingenuidade do povo permitir. É um escondidão. Fez do jogo das escondidas uma arte.

O vilão é o político, por estes tempos e locais ocidentais, é a legião que forma a classe política, ovelha e rebanho ranhosos da nação, e vai desde aprendiz tenro a veterano musculado.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

35.Sofrimento mínimo

O homem não se cansa de descobrir coisa novas e ainda bem, foi para isso que foi feito, ou que se faz, razão e compreensão dão-lhe um estatuto ímpar na natureza, diria numa frase com pompa: a descoberta engrandece e enobrece o homem!

A ciência porém esclareceu recentemente que afinal o homem não é, a seu modo, ímpar, isto é, singular, na animalidade terrena, mas existe outro igualmente ímpar, a seu modo.

Há de facto um bicho que não tem cérebro, mas que apesar de tudo vive, que não tem sentidos, mas que apesar de tudo diferencia o verde dos campos do vermelho do sangue, ouve o chocalho distintamente da corneta, atrai-o o perfume da comadre, repudia o da burra, sente uma festa, mesmo que não reconheça se de amizade se de fingimento, ou uma mosca que o irrite e por isso a enxota, saboreia a contento a erva fresca, cospe sem engano o excremento, mas que e finalmente não tem dor! E isto é ímpar! Um animal sem dor e por isso sem cérebro, mas que apesar de tudo vive e ainda por cima tem todos os sentidos em ordem! Milagre!

É o touro, em tudo igual aos outros animais menos na dor! Único, inclusive contando com o humano, que bem sabe o que é doer!

Mas estou na dúvida, não sei se esta descoberta cabe melhor na ciência se na cultura, e ainda tenho outra, não sei se é maior o animal - aqui já emprego o termo no sentido pejorativo de besta – que espeta, se o espetado.

Se decidir a favor do que espeta perco todo o respeito por mim próprio, eu que me julgava homo sapiens, orgulho da criação e ou evolução, sou afinal uma coisa triste, uma bicheza inferior, se decidir a favor do que é espetado os biólogos haverão de dizer que sou um ignorante…

Quando publiquei no blog o manifesto do Silva Garcia contra as touradas o António reagiu, mal e depressa, por e-mail: «Discordo profundamente desse senhor! Tenho uma dúzia de bons argumentos a favor da tourada à portuguesa (sofrimento mínimo, bandarilhas de plástico…). Essa ideia pertence à doentia corrente “urbano-depressiva” contra o saudável ruralismo. É a cidade contra o Campo. Da próxima vez que falar contigo hei-de comparar a tourada ao futebol…»

Respondi-lhe logo: «e da próxima vez que estiver contigo hei-de perguntar-te, pois morro de aprender, o que é que tu entendes por sofrimento mínimo, e enquanto te pergunto vou-te torcendo uma orelha a princípio com moderação continuando mesmo depois de começares a berrar até fazer um bocadinho de sangue, sim porque tens de deitar umas gotinhas que sejam, senão não vale, ou então levo uma agulha e começo a picar-te ao princípio ao de leve continuando mesmo depois de começares a gritar até brotar o vermelhinho. Tens de me explicar o que é isso do sofrimento mínimo. Talvez tenhas uma régua, régua não que é muito arcaico, mas um sensor electrónico, que eu, ignaro, desconheça, para por nos touros e que eles possam accionar por vontade como quem diz «eh pá! não exageres que já estás a magoar!»

Deixei uma linha, que gosto de separar os assuntos, cada um à sua vez, e continuei: «e depois chamas-me urbano-depressivo, vou-te pedir explicações…, e a cidade contra o campo, eu que adoro o campo e detesto a cidade! Mas o que é que uma coisa tem a ver com outra? Então para gostar do campo é preciso gostar de touradas? Quando for para o campo tenho que me munir de espada, bandarilhas e capote e andar atrás dos touros a ferrá-los – devia ser bonito, escorregava na primeira bosta e lá me ía - senão sou mal visto, mal recebido, escorraçado, como um estranho, como um inimigo, melhor dizendo, como urbano-depressivo? Bom, se os teus onze argumentos restantes, apenas prometidos mas não entregues, são do mesmo quilate, devem seguramente constituir erudita enciclopédia».

Este é um daqueles assuntos de juízo tão óbvio que chega a ser difícil arguir, é um paradoxo, eu sei, mas quando a evidência é tão manifesta, tão visível e clara, mesmo descarada, não conseguimos perceber como é que o outro não vê, e perplexos dessa humana impossibilidade ficamos sem palavras.

Prefiro citar Victor Hugo: “Primeiro foi necessário civilizar o homem em relação ao próprio homem. Agora é necessário civilizar o homem em relação a natureza e aos animais."

E depois para além do sofrimento está em causa a dignidade do próprio homem. Mesmo a acreditar naquela descoberta científica de que o touro por não ter dor não tem cérebro, ficava por resolver o problema da dignidade, e não será a dignidade, mais ainda que a razão, o grande e distintivo atributo do homem e que lhe confere o estatuto de ser superior? Para mim parece-me elementar que o aviltamento gratuito do alheio trás por inerência o rebaixamento do próprio.

E poderá haver cultura sem dignidade? A cultura não é saber equações matemáticas de cor, fórmulas químicas na ponta da língua, latitudes ou longitudes e nem sequer a gramática de trás para a frente. A cultura é saber usar o conhecimento para a compreensão e a compreensão para a elevação do homem.

E o texto que tanto reboliço causou ao António e que eu subscrevo integralmente era este. (Ver: Crónica 17)

Depois deste texto seguia-se uma proposta de moção a favor da declaração municipal simbólica da Póvoa de Varzim como cidade anti-touradas.

Fui buscar o alfinete para não me esquecer. O facto de sermos amigos não significa que da próxima vez, como prometido, não o pique…


sábado, 14 de junho de 2008

34.Em defesa da História

Estava de pé, e ela sentada, contava-lhe factos políticos históricos, e ela jovem, vinte e poucos, cara expressiva, modos despachados, esperta mas pura, resposta pronta nem sempre pensada, fitava-me presa e desconcertada, eram tantas as surpresas sobre o que lhe tinham dito e falado, olhos vivos, arregalados, e interrompia-me como já o fizera amiúde e de seu modo impulsivo e dizia-me «já há tantas associações por isto e por aquilo, porque não criar uma Associação para a Defesa da História?» e interrompi-me, agora eu, suspenso naquela ideia original, que nunca me atravessara, tão oportuna e necessária para este país, para esta geração e neste tempo, revirei-a, meditei-a por instantes e como quem lhe passa pelas mãos uma causa que não pode segurar respondi-lhe: «realmente é uma excelente ideia, mas eu já tenho tanta coisa que não posso, pode ser que alguém se lembre e eu adiro».

Chama-se Raquel. São estes filhos que um dia haverão de repor a verdade.

No dia seguinte tinha um e-mail dela:

«Zé, não me consigo conformar com esta “história”… Se tivesse capacidade era eu própria que constituía a Associação, movimento, grupo, qualquer coisa! Reunia os vivos que pudessem testemunhar, pesquisava os escritos do meu avô, registos, cartas, enfim! Qualquer coisa! Estou indignada e até afectada! Sinto-me enganada, traída e abusada! Como é possível!?!? Não me sai da cabeça…!

Reli o e-mail. Tristeza e esperança. Tristeza pela impotência, que sou, esperança pela semente, que será.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

33.Não mintam mais aos nossos filhos! (2)

«Meu caro Zé», era a primeira linha e a primeira frase. Abrira com alguma perplexidade, confesso, essa carta imprevista que recebera do António, já que sempre nos correspondíamos por e-mail e por isso mesmo esta surpresa formal, quase preocupação, dada a parcimónia da comunicação.

Papel com marca de água, num cinzento quase branco, impecável, a feitio do autor, escrita à mão dum fôlego, sem rasuras, ou então ensaiado e passado com esmero para realçar a gravidade, continuava na terceira linha: «Fazendo minhas as tuas palavras “esta é a minha pequeníssima contribuição, mas já é alguma, para o movimento de indignação nacional”, venho, a propósito destes dias de fins de Abril em que as mentiras retornam dos buracos e saiem desbragadas, o que já vai sendo apanágio da terceira república, tecer, para memória futura, que tu é que és exímio em arquivos, umas considerações sobre o torcer mentecapto da história».

Mais aliviado, não havia prisão nem revolução na vida do António, sentei-me.

«A primeira refere-se à construção da História, não a dos factos genuínos realmente acontecidos, mas a da versão falseada que sobre eles o poder dominante edificou. Como sabemos a História é dos vencedores e não dos vencidos, destes não reza a história, como é comum dizer-se, quer isto significar que os vencedores materiais, de factu e com toda a probabilidade não de jure, forjam a contorção que mais lhes convém para justificarem a si próprios e ao mundo o porquê dos actos empreendidos, a qual versão passa a ser desde então a oficial. E quanto mais a vitória é imoral ou injusta, caso houvesse lugar para aplicar tão cândidos conceitos no contexto do poder e da força, maior é a mentira dos vencedores. Sempre foi assim e continuará a ser. Já na antiguidade dizia Breno, célebre caudilho gaulês que derrotou e saqueou Roma no ano de 390 a.C., vae victis! Ai dos vencidos! Ou nas palavras de Charles Percy Snow “ A história não tolera as derrotas”.

É preciso pois que passe a geração dos vencedores e fazedores da história para que aos poucos e poucos a verdade aprisionada comece a libertar-se. Muitas vezes é necessário mais do que uma geração, tão enraizada na cultura oficial foi a mentira, e é sempre dramática a revelação da realidade porque fatalmente acabará por opor pais e filhos, os pais porque autores ou cúmplices de um falso legado, os filhos porque descobrem ser vítimas de um embuste.

Ora desta falsificação da História não se escaparam nem Portugal nem os portugueses no que se refere quer ao 25 de Abril, quer ao processo de descolonização. A história que nos tem sido contada pelos seus protagonistas e afins, geração ainda viva, está cheia de mentiras, pelas razões óbvias de tentar esconder a verdade sobre si próprios, de quem eram, e de justificar à luz de ideais não existentes, porque o fizeram.

Desta geração, há uns que viveram a História e conhecem a verdade, mas não têm assento, nem voz, há outros que também a viveram e torcem a verdade, por exclusivas razões de má consciência ou de outra forma perderiam respeito por si próprios, e há muitos outros que não sabendo minimamente do que falam, ou papagueiam o discurso disciplinado do politicamente correcto, ou ainda, por maior zelo de conveniência, mais inventam. Que os segundos tenham mentido a si próprios e à sua geração é grave, que os terceiros, meros fantoches daqueles, os imitem na mentira, continua a ser grave, mas agora que ambos mintam descaradamente aos seus filhos, isso já é intolerável.

O mal está feito, em muitos casos irreparável, o tempo não retrocede, a História é assim, não há uma história perfeita, os vencedores mentiram, esconderam-se na falsidade, não tiveram a coragem da verdade, foram cobardes, hoje poderão não ter ainda a bravura do arrependimento e da confissão, o homem é fraco, mas há uma coragem mínima que lhes é exigida, não mentirem mais aos seus e aos nossos filhos. Se não a tiveram para si que a tenham pelo menos para os seus filhos! Chega de história política, é tempo da verdadeira História.

E eram estas as considerações que as reportagens e entrevistas de circunstância por esta época realizadas com figurinhas do passado presente me exigiram, e muitas reposições de verdade seriam necessárias, em tamanho bordel de falácias, para endireitar reescrever a História desde o 25 de Abril. Sabes do que falo e por isso não me estendo em ditos e desditos, por redundante e falta de pachorra, que só aos ignorantes aproveitariam».

Sim, de facto, para quem viveu a verdadeira História, como ele e como eu, não era preciso entrar no inventário infindável das contra-facções. Terminava e abraçava-me. Fiquei a pensar que a única justificação para a formalidade da carta era a de simbolicamente dar peso à gravidade da revolta. Mas haveria de tirar a limpo.

Mais abaixo tinha ainda um post scriptum que dizia:

«Para aqueles que no futuro lerem esta carta, escrita e enviada nos finais de Abril do ano de 2008 ao meu amigo Zé, deixo uma nota de precaução que infelizmente se justifica na previsão da fuga de certos leitores facciosos, intelectualmente desonestos, que não tendo argumento que contrarie a verdade, procuram desviar as atenções para o lugar comum dos rótulos ideológicos apressados e mais viciosos. São estes os caciques que, depauperados de toda a integridade e falhos de toda a imaginação, enchem a boca dos vocábulos, reaccionário, colonialista, fachista, etc. Mas desenganem-se tais enganadores, pois provavelmente, se não fosse a modéstia diria seguramente, sou na prática da vida mais apologista da autodeterminação dos povos e da verdadeira liberdade dos cidadãos, que outra coisa não poderia patrocinar em coerência com a defesa dos direitos humanos de que me tenho constituído acérrimo combatente, na rua e não no gabinete, do que muitos daqueles serão mesmo em teoria. E por isso podem pois esses senhores abster-se dessas fabulações descabidas e num rebate de valentia reflectirem sobre o espelho da consciência. Fica assim desfeita a previsível refutação da quinta coluna, porquanto não é nada disso que se trata mas de repor a verdade histórica das intenções e dos factos».

sábado, 7 de junho de 2008

32.O homem criou, o capital destruiu

“Em 1996, as primeiras viaturas eléctricas de produção em série, os EV1 (Electric Vehicle 1), foram fabricados nos EUA pela General Motors, e viram-se a circular pelas estradas da Califórnia. Eram viaturas rápidas: faziam dos 0 aos 100 km/h, em menos de 9 segundos! Não produziam nenhum gás de combustão (nem sequer tinham tubo de escape). Eram facilmente recarregáveis com energia eléctrica na garagem de casa. Dez anos mais tarde, estes carros do futuro desapareceram completamente! Como é isto possível? Em primeiro lugar, estas viaturas não podiam ser compradas, mas unicamente alugadas! Os contratos de aluguer não foram, pura e simplesmente, renovados. A General Motors recuperou todos os EV1, apesar da oposição dos seus utilizadores e depois… …DESTRUIU… todas estas viaturas.

Em 1997, a Nissan apresentou o modelo eléctrico Hypermini no salão de Tokyo. O Município da cidade de Pasadena (Califórnia - EUA) adoptou esta viatura como veículo profissional para os seus empregados. Foi muito apreciado pela sua facilidade de manobra e estacionamento, e ainda pela sua grande operacionalidade em movimentar-se dentro da cidade. Em Agosto de 2006, expirou o contrato de aluguer das referidas viaturas, entre a Nissan e o Município de Pasadena. O Município tentou comprar as viaturas mas a Nissan recusou peremptoriamente, tendo-as recuperado todas para as DESTRUIR!

Em 2003, a Toyota decide parar a produção do RAV4-EV. (EV - veiculo eléctrico). Este 4x4 eléctrico, um produto de alto refinamento tecnológico, era muito estimado pelos utilizadores. Em 2005, os contratos de aluguer das viaturas, expiraram. A Toyota imediatamente se apressou a recuperar todos estes veículos afim de os… DESTRUIR!

Mas entretanto, alguns cidadãos americanos começaram a organizar-se: A associação “DontCrush” entra em acção para tentar salvar os RAV4‑EV. Esta associação fez pressão sobre a Toyota durante 3 meses. Finalmente VITÓRIA! A Toyota recuou e autorizou, os que alugaram estes veículos RAV4‑EV, a comprá-los”.

A gigantesca prensa metálica, uma vez accionada, soltava um ronco sinistro enquanto as suas manápulas gémeas, paralelas, se aproximavam uma da outra, lenta mas inexoravelmente.

O carro eléctrico, vermelho vivo, de aparência igual a tantos outros e que mesmo de perto não confessava a sua particularidade distintiva, arrastado contra vontade, se a tivesse, sobre a manápula inferior, esperava sem esperar, na inconsciência material do não saber.

De repente, o ronco infausto da prensa muda abruptamente para um resfolgar acidentado, chiadeira descontínua, ora guincho, ora grito. A plataforma de cima esbarrara no tejadilho do carro, mas logo sem interrupção de marcha, sem indecisão ou contemplação, prosseguira, prensando, comprimindo, calcando, achatando, por fim esmagando o carro, novo em folha, vermelho vivo, igual a tantos outros mas com a desventura de ter nascido eléctrico.

Faz impressão olhar daqui este cenário, este amontoado de chapas metálicas, disformes, outrora soerguidas, elegantes e orgulhosas, lançadas umas sobre as outras, reflectindo aqui e ali um raio de sol, neste cemitério macabro de sucata.

O homem criou, o capital destruiu.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

31.Dois records dignos do Guiness

Quando Sir Hugh Beaver, progenitor ainda sem o saber do Guiness, discutia qual seria a ave de caça mais veloz da Europa, se a tarambola, se o galo-selvagem, estava muito longe de imaginar que um dia, cinquenta e sete anos depois e a mais de dois mil kilómetros de distância da sua caçada, um estado, um governo, bateriam um record difícil e original, o de conseguir aumentar por dezassete vezes consecutivas e em menos de cinco meses o preço da gasolina.

Os portugueses passaram a ter em média uma vez por semana e para quebra da monotonia das suas vidas, já de si tão pouco sobressaltadas de inovações, uma surpresa, quando, ou na ida para o trabalho, ou na volta para casa, a mula sofisticada que os carrega reclamava voraz, não maior ração, mas ração mais preciosa. Afinal o que na barriga do mamífero entrava era o mesmo, assim confirmava o mostrador das porções, mas o que saía do dono era mais, assim se queixava o erário doméstico.

O governo está de parabéns, nem tudo são coisas más, isso só para os pessimistas e para os derrotistas e para os deprimidos, etc. etc. etc., por ter conseguido o feito de entrar para o Guiness e logo em duas categorias. A primeira já se vê, foi aquele facto difícil e original em andamento prestíssimo, e a segunda, menos difícil e menos original, para de quem se trata, mas contudo igualmente logradora de record, foi a monstruosa mentira sob a qual aquele se monta e se juntarmos as duas ficamos com uma montanha combustível, perigosa e imprevisível.

E então não é que desta última vez as petrolíferas avisaram que o aumento era a partir da meia-noite, e lá vai o bom do povo para as bichas a ver se ainda poupa uns tostões, e os malandros a mudarem os preços às onze horas, e o bom do povo feito papalvo, e as gasolineiras a desculparam-se que a culpa é das bombas que são automáticas, e o bailinho a prosseguir e a música sem parar e a garraiada a triunfar e vai de vento em popa sem pudor que tudo é descaro e uma mulher que sai do carro e pede para a revolução não se atrasar porque senão quando vier só há ossos para guerrear…

Aqui há uns tempos recebi um e-mail do Manuel, o apelido fica para mim, salvo seja, que anda para aí muita represália, e loucos como eu que vejo o rei em pelota e tendo a fala desabrida dos heróis não me embaraço em titubeadas mas reclamo alto e a bom som pelo povo, incluindo neste os mudos de vontade, não têm que ser todos, digo, os loucos como eu, e por isso a ocultação do apelido do Manuel que então desabafava assim:

“Fui informado recentemente que os preços de uns produtos químicos comercializados pela empresa onde trabalho iriam subir novamente devido ao aumento do preço do petróleo. Todos os fins-de-semana meto gasolina no carro, e cada vez preciso mais euros para comprar menos litros de Super-95. Dizem-me que é por causa do preço do petróleo. Assim, fui à net buscar umas tabelas/imagens e comecei a fazer umas contas”.

Depois vêm uns quadros com muitas linhas, colunas e números, com os quais não vos maço, podendo sempre o espírito, ou curioso, ou desconfiado, imitar o Manuel e dar-se ao trabalho como ele de ir à net, portanto e continuando, para os que fazem fé, passo por cima dos quadros e vou á sua conclusão.

Então temos, dizia ele:

- Em 2000, um barril de petróleo custava 63 USD, ou seja, 70.00 EUR (1.00 Eur = 0.90 USD). Em 2008, um barril de petróleo custa 98 USD, ou seja, 70.00 EUR (1.00 Eu = 1.40 USD).

E remata:

- Gostava que me indicassem onde está a subida do preço do petróleo. Cada um que pense por si, mas eu acho que estamos a ser roubados pelos políticos e pelas petrolíferas.

Ah, esqueci-me de dizer que o título do seu e-mail era: “Uma instituição chamada mentira”.

E depois pensei para mim, que nestas coisas de matemáticas ou economias tenho que ir devagar; ora então o petróleo aumentou, é um facto, mas como o dólar se desvalorizou em relação ao euro, outro facto, o petróleo acabou por não aumentar face ao euro. Aumentou para os americanos, não aumentou para os europeus. Simples!

Será que eles, os políticos e, ou, as petrolíferas, ou os dois juntos, que é o mais certo, se aproveitaram da nossa ingenuidade para nos arrear, escondendo-se nessa fabulação esotérica que dá pelo nome de economia?

E fiquei a modos que embaraçado, muito embaraçado com a minha estupidez. Queria-me revoltar mas a estupidez atrofiava-me, pesava-me muito, pesava-me mais do que a revolta. E pensar que através do voto lhes tinha sancionado essa montanha de mentira. Isto está mesmo muito complicado!

Cambaleei para a net, que outro termo mais expressivo para significar o atordoamento estupidificante que ainda me possuía não me ocorre, para saber qual era o IVA da gasolina.

Mas não o devia ter feito, porque em vez de me sossegar mais enfermo fiquei. É que para além do IVA, já de si no máximo dos 21%, havia outro imposto, gordo e feio, que totalmente me siderou, chamado ISP, que encavalitado no primeiro dava à data a módica percentagem de 63,9%, o que significava que em cada cem cêntimos de combustível, 63,9 cêntimos iam directamente para o buraco do governo, que não do estado e que muito menos da nação.

Recuperando da minha estupidez que era demasiado estúpida, vinha-me uma nova inteligência que me fazia reconhecer que o governo, no fundo, acabava sempre por ter razão. De facto o combustível é um luxo, de facto todos os transportes são supérfluos, levar as crianças à escola, conduzir os doentes aos hospitais, abastecer os supermercados de comida, ir para o trabalho, ir para casa, ir, ir, ir que o homem fez-se para ir, pode muito bem ser tudo feito sem consumo de gasolina.

As crianças podem ir de trotineta, que até se divertem muito mais, os adolescentes e mesmo alguns adultos mais desempoeirados de skate, que até é muito mais saudável, os doentes de mula, que até tem a vantagem de ir devagar sem solavancos na calçada, a comida em carroças e para todas as outras necessidades e gostos ainda sobejam um sem número de escolhas, desde o triciclo e a bicicleta, que os há de muitos tamanhos e feitios, até a um infindável número de animais, que basta aparelhar, com a devida precaução da estética e funcionalidade, ao jeito do freguês e conforme o estatuto social, seja patrício ou plebeu, a idade, seja tenro ou esclerótico, o peso, tenha carnes abundantes ou magreza inconveniente, a jornada, seja curta ou cumprida, a ansiedade, com pressa ou sem pressa e o trajecto, seja por terra, ar ou água, por cidade ou por campo.