sábado, 31 de maio de 2008

30.O senhor Nunes

O senhor Nunes tira, num gesto vagaroso, quase elegante, os óculos, se os tiver, não sei se os tem, mas nesta sua congeminação haveria de os tirar, em sinal de reflexão aguçada, e chegar-se para trás, encostando bem a espinha às costas do cadeirão, que isso a ambos há-de ter, espinha e cadeirão, e nesta sua congeminação há-de estar sentado, e olha o tecto no aprofundamento do raciocínio, e por tique, que é capaz de o ter, finge coçar o cocuruto da cabeça como a estimular o avanço célere dos neurónios idiotas, aqueles que produzem ideias sublimes.

Precisa de trepar a ministro e tem que ver como, ou outra ambição, ou compulsão freudiana de provar, alguma coisa a alguém.

E neste esforçado exercício do intelecto lembra-se da moda da gestão por objectivos que por estes tempos de brilhantismo na governação perpassa pelos espíritos políticos mais iluminados do país e exclama, «é isso!» e uma lâmpada acende-se, e um esgar, uma satisfação inebria-o pela descoberta genial, e agora, não vagarosa mas desenvoltamente, enfia os óculos, se os tiver, chega o rabo para a frente no cadeirão, que os tem, e excitado tecla no computador, faz assim um género de estatística preventiva.

Ora se mandar que se descubram tantas infracções, isso corresponde a tantos processos de contra-ordenação, o que equivale a tantas coimas e mais ou menos a tantos processos crime, o que significa fechar tantos estabelecimentos, o que vem a dar meter na prisão tantos criminosos.

O senhor Nunes é primeiro António, António Nunes, inspector-geral da ASAE - Autoridade para a Segurança Alimentar e Económica, instituição recente, criada ao que parece por imperativo da Comunidade Europeia e o dito senhor Nunes faz a propósito questão de deixar bem claro e por isso proclama sem inibição ou gaguez: "A orientação global é dada pela direcção da casa, é unipessoal, sou eu que a dou".

A Asae depressa ganhou fama e proveito pela forma dinâmica e extremosa com que aplicou a nova lei. Os seus funcionários, briosos e viris, de farda e pistola à cinta, passaram a ser notícia constante dos telejornais, irrompendo de surpresa pelos restaurantes e afins, casas de pasto e sucedâneas, tascas, tabernas, baiucas, boticas e o que mais, no cumprimento escrupuloso do seu dever, lançando o pânico em certos e nefastos antros, fazendo correr, fugir e dispersar, hordes de malfeitores, uns ainda caçados e enjaulados, que impunemente envenenavam as populações ingénuas e indefesas.

O senhor Nunes suspende-se na conclusão do seu cálculo, mira-o e admira-o, acha porém o número de prisões ainda baixo para tanta malandragem que sabe existir, que o povo tem esta inclinação prevaricadora e é preciso andar sempre em cima dele e com um pé atrás, e por número tão escasso a sua competência não há-de impressionar, e retoma a partir de cima a descida encadeada dos números para lograr encarceramentos mais significativos. Rejubila-o a estatística conseguida, antes de o ser já o é, proporcional e harmoniosa, verosímil e convincente. «Mas isto tem que ser muito à socapa» previne-se, «não vá o diabo tecê-las, que anda para aí uma legião de fofoqueiros que só dizem mal e que só embaraçam a justiça» acrescenta.

Que o crime alimentar e económico existe, já ele o sabe de sobejo, o que é preciso é desmascará-lo e dar-lhe arrumo, expô-lo à luz do dia nos números que não mentem, e de certeza que sempre haverão mais casos do que aqueles que ele de antemão sentenciou, e caso não os haja deviam haver, e de passagem lembra-se, não sei a que propósito, de um ditado árabe que diz: «bate todos os dias na tua mulher, porque mesmo que não saibas porquê, ela há-de saber».

Ora se há uma polícia tem que haver um crime, assim já pensava a polícia política, porque senão para que é que era preciso a polícia? E agora que se criou a polícia não será dever desta criar o crime?

“Ao fim de toda a lógica, de todas as doutrinas, de todos os gestos, os mais puros, de todas as iniciativas as mais altas, de todos os ideais, de todas as realizações: a polícia”. (Vergílio Ferreira)

Realizado, quer dizer, com aquela sensação de cheiinho, que vem da consciência de uma inteligência superior e de um zelo exemplar, ambos ao serviço do Estado, o senhor Nunes levanta-se a desfrutar do sabor por inteiro do dever cumprido, chega-se à janela que abre de par em par numa largueza de movimento, antevendo a merecida recompensa, já se vê com toda a justiça no acto de posse do ministério, sob as palavras gratificantes do Presidente, «é destes homens que o país precisa para recuperar a confiança do povo nas instituições políticas», e da janela contempla o mundo as seus pés, e neste com especial devoção os restaurantes e afins, casas de pasto e sucedâneas, tascas, tabernas, baiucas, boticas e o que mais, e enche reconfortado os pulmões do fresco ar da manhã que a natureza indistintamente oferece a todos os nascidos.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

29.Respostas de alunos nos seus testes escolares

Eu, Zé, de muitos apelidos, uns de que me orgulho, outros de que me envergonho, declaro por minha honra, que transcrevo tal como recebi, sem traço de cosmética, sem soma ou diminuição de vocábulo ou pontuação, mas exactamente como os meus olhos viram, e assim, originais e incólumes a qualquer tentação de reparo ou correcção, ou outra qualquer modificação, virgens recebidas, virgens entregues, assim as transmito, estas respostas de alunos nos seus testes escolares, corria o ano de 2008 no país Portugal.

História

• A História divide-se em 4: Antiga, Média, Moderna e Momentânea (esta, a dos nossos dias);

• O Hino Nacional Francês chama-se La Mayonèse;

• Tiradentes, depois de morto, foi decapitulado;

• Entres os índios da América, destacam-se os aztecas, os incas, os pirineus, etc;

• No começo os índios eram muito atrazados mas com o tempo foram-se sifilizando;

• Com a morte de Jesus Cristo os apóstolos continuaram a sua carreira;

• Entre os povos orientais os casamentos eram feitos "no escuro" e os noivos só se conheciam na hora h.

Geografia

• A capital de Portugal é Luiz Boa;

• O principal rio nos Estados Unidos é o Mininici;

• A Geografia Humana estuda o homem em que vivemos;

• Na América Central há países como a República do Minicana;

• A Terra é um dos planetas mais conhecidos no mundo;

• As constelações servem para esclarecer a noite;

• As principais cidades da América do Norte são Argentina e Estados Unidos;

Ciências

• Ecologia é o estudo dos ecos, isto é, da ida e vinda dos sons;

• Solo é quando numa orquestra um dos músicos "capricha" sozinho e os outros ficam à escuta;

• Assexuada é a pessoa que não está nem do lado de cá nem do lado de lá;

• Trompa de Eustáquio é o instrumento musical de sopro, inventado pelo grande músico belga Eustáquio, de Bruxelas;

• Newton foi um grande ginecologista e obstetra europeu que regulamentou a lei da gravidez e estudou os ciclos de Ogino-Knaus;

Português

• Parêntesis é o gráu da família que existe entre os pais e filhos, tios e sobrinhos, avós e netos, primos e primas, etc;

• Preposição, conforme diz a palavra pela sua própria entomologia, é aquela que é colocada antes da outra que é mais importante;

• Conjunção é a grafia que se usa quando se quer conjugar um verbo;

• Sujeito é a pessoa com quem a gente fala;

• Concordância é quando nós estamos de acordo com o que o outro disse.

Exames - 2ª Fase

• A febre amarela foi trazida da China por Marco Polo;

• Os ruminantes distinguem-se dos outros animais porque o que comem, comem duas vezes;

• O coração é o único órgão que não deixa de funcionar 24 horas por dia;

• A arquitectura gótica notabilizou-se por fazer edifícios verticais;

• A diferença entre o Romantismo e o Realismo é que os românticos escrevem romances e os realistas nos mostram como está a situação do país;

• As múmias tinham um profundo conhecimento de anatomia;

• Na Grécia a democracia funcionavam muito bem porque os que não estavam de acordo envenenavam-se;

• As plantas distinguem-se dos animais por só respirarem à noite;

• Os estuários e os deltas foram os primitivos habitantes da Mesopotâmia;

• A caixa de previdência assegura o direito à enfermidade colectiva;

• A respiração anaeróbica é a respiração sem ar que não deve passar de três minutos;

• Calor é a quantidade de calorias armazenadas numa unidade de tempo;

• Antes de ser criada a Justiça, o mundo era injusto.

Com os exames nacionais do 9º e do 12º

• Lavoisier foi guilhotinado por ter inventado o oxigénio;

• O nervo óptico transmite ideias luminosas ao cérebro;

• O vento é uma imensa quantidade de ar;

• Terramoto é um pequeno movimento de terras não cultivadas;

• Os antigos egípcios desenvolveram a arte funerária para que os mortos pudessem viver melhor;

• Péricles foi o principal ditador da democracia grega;

• O problema fundamental do terceiro mundo é a superabundância de necessidades;

• O petróleo apareceu há muitos séculos, numa época em que os peixes se afogavam dentro de água;

• A principal função da raíz é enterrar-se;

• O sol dá-nos luz, calor e turistas;

• As aves têm na boca um dente chamado bico;

• A unidade de força é o Newton, que significa a força que se tem de realizar num metro da unidade de tempo, no sentido contrário.

sábado, 24 de maio de 2008

28.Manifesto em defesa da língua portuguesa contra o acordo ortográfico

1 – O uso oral e escrito da língua portuguesa degradou-se a um ponto de aviltamento inaceitável, porque fere irremediavelmente a nossa identidade multissecular e o riquíssimo legado civilizacional e histórico que recebemos e nos cumpre transmitir aos vindouros. Por culpa dos que a falam e escrevem, em particular os meios de comunicação social; mas ao Estado incumbem as maiores responsabilidades porque desagregou o sistema educacional, hoje sem qualidade, nomeadamente impondo programas da disciplina de Português nos graus básico e secundário sem valor científico nem pedagógico e desprezando o valor da História. Se queremos um Portugal condigno no difícil mundo de hoje, impõe-se que para o seu desenvolvimento sob todos os aspectos se ponha termo a esta situação com a maior urgência e lucidez.

2 – A agravar esta situação, sob o falso pretexto pedagógico de que a simplificação e uniformização linguística favoreceriam o combate ao analfabetismo (o que é historicamente errado), e estreitariam os laços culturais (nada o demonstra), lançou-se o chamado Acordo Ortográfico, pretendendo impor uma reforma da maneira de escrever mal concebida, desconchavada, sem critério de rigor, e nas suas prescrições atentatória da essência da língua e do nosso modelo de cultura. Reforma não só desnecessária mas perniciosa e de custos financeiros não calculados. Quando o que se impunha era recompor essa herança e enriquecê-la, atendendo ao princípio da diversidade, um dos vectores da União Europeia. Lamenta-se que as entidades que assim se arrogam autoridade para manipular a língua (sem que para tal gozem de legitimidade ou tenham competência) não tenham ponderado cuidadosamente os pareceres científicos e técnicos, como, por exemplo, o do Prof. Óscar Lopes, e avancem atabalhoadamente sem consultar escritores, cientistas, historiadores e organizações de criação cultural e investigação científica. Não há uma instituição única que possa substituir-se a toda esta comunidade, e só ampla discussão pública poderia justificar a aprovação de orientações a sugerir aos povos de língua portuguesa.

3 – O Ministério da Educação, porque organiza os diferentes graus de ensino, adopta programas das matérias, forma os professores, não pode limitar-se a aceitar injunções sem legitimidade, baseadas em “acordos” mais do que contestáveis. Tem de assumir uma posição clara de respeito pelas correntes de pensamento que representam a continuidade de um património de tanto valor e para ele contribuam com o progresso da língua dentro dos padrões da lógica, da instrumentalidade e do bom gosto. Sem delongas deve repor o estudo da literatura portuguesa na sua dignidade formativa.O Ministério da Cultura pode facilitar os encontros de escritores, linguistas, historiadores e outros criadores de cultura, e o trabalho de reflexão crítica e construtiva no sentido da maior eficácia instrumental e do aperfeiçoamento formal.

4 – O texto do chamado Acordo sofre de inúmeras imprecisões, erros e ambiguidades – não tem condições para servir de base a qualquer proposta normativa. É inaceitável a supressão da acentuação, bem como das impropriamente chamadas consoantes “mudas” – muitas das quais se lêem ou têm valor etimológico indispensável à boa compreensão das palavras. Não faz sentido o carácter facultativo que no texto do Acordo se prevê em numerosos casos, gerando-se a confusão. Convém que se estudem regras claras para a integração das palavras de outras línguas dos PALOP, de Timor e de outras zonas do mundo onde se fala o Português, na grafia da língua portuguesa. A transcrição de palavras de outras línguas e a sua eventual adaptação ao português devem fazer-se segundo as normas científicas internacionais (caso do árabe, por exemplo).

Recusamos deixar-nos enredar em jogos de interesses, que nada leva a crer de proveito para a língua portuguesa. Para o desenvolvimento civilizacional por que os nossos povos anseiam é imperativa a formação de ampla base cultural (e não apenas a erradicação do analfabetismo), solidamente assente na herança que nos coube e construída segundo as linhas mestras do pensamento científico e dos valores da cidadania.

Os signatários: Ana Isabel Buescu - António Emiliano - António Lobo Xavier - Eduardo Lourenço - Helena Buescu - Jorge Morais Barbosa - José Pacheco Pereira - José da Silva Peneda - Laura Bulger - Luís Fagundes Duarte - Maria Alzira Seixo - Mário Cláudio - Miguel Veiga - Paulo Teixeira Pinto - Raul Miguel Rosado Fernandes - Vasco Graça Moura - Vítor Manuel Aguiar e Silva - Vitorino Barbosa de Magalhães Godinho - Zita Seabra.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

27.Cenhora menistra - João Aguiar

A gente vai-se entendendo, com um ou outro sopapo nos professores, sinal apenas de espírito de iniciativa e de saudável energia física.

Vânho com esta agardecer a voça escelencia akela koisa de não ligar puto à hortugrafia nos isames do 9º.anu i de não ter metido nelex aqueles xatus do Camões i do Jil Vissente e de a perova ser bestialmente fássil. Eu já não benefissiei porque akabei a xatisse dos estudos e tou agora num dakeles empregus purreiros oferessidos pelo cenhor menistro da ikonumia, mas a minha irman Katia Vaneça fês u isame i gostou muito. Ela não pressisa de hortugrafia pra nada, já tá a fazer istájio numa kasa de alterne muita fixe, pagam bem i ela nem tem de falar, kuanto mais eskrever.

Também kero agardecer, cenhora menistra, ke os isames do 12º.forão bué da fásseis, cem ninhuma gramatika, purke u meu irmão Xico us fês e kurreram lhe muitabem i ele nem estodou nada todu u anu, a bem dizer, purke já ganha a vidinha komo diller i então não tem tempu pra essas xatisses. Pra ele livrus e gramatika, jamé, jamé. I então eu keru ka cenhora kontinui acim, ke vai muitabem. a) Juzé da Cilva, i.v.l. (Inginheiro Verdadeiramente Lissenssiado )

Este documento, comovente e palpitante, foi-me cedido por um parente em vigésimo segundo grau de um alto funcionário do nosso Ministério da Educação, depois de um jantar muito bem regado, quando ele já estava claramente com os copos e balbuciava uma velha canção do desaparecido Hervé Villard: “Nu niron plus jamé”…(ortografia francesa modernizada e melhorada pelos do nosso sobredito Ministério; em francês não-corrigido, seria “Nous n’irons plus jamais”)

Interrompendo a cantoria e colocando nas minhas mãos a carta acima transcrita, ele disse-me, entre soluços: “Leia, meu amigo! Veja como esta nossa ministra é popular, como a juventude a estima e apoia! E a juventude é a promessa do futuro! Hic!”. Eu li a carta e pensei logo que devia dá-la ao conhecimento dos leitores. Porque é edificante.

Segundo o mesmo parente em vigésimo segundo grau me confidenciou, o jovem autor da tocante missiva, além de preencher, como ele próprio informa, um daqueles postos de trabalho prometidos em boa hora pelo senhor ministro Manuel Pinho, vai também integrar uma comissão que deverá promover (segundo ouvi na TV) maiores contactos entre professores e alunos, uma medida destinada, especificamente, a evitar que os segundos agridam os primeiros. A coisa é assim: parece que se multiplicam, nas escolas, os casos de indisciplina e de agressões a docentes. Um espírito tacanho pensaria logo que se impunha um reforço da disciplina e da autoridade da escola, já que, por exemplo, hoje em dia é legalmente muito difícil, e sobretudo moroso, punir um aluno insolente ou violento. Mas isto, repito, é o pensamento de um espírito tacanho. O que é preciso (e felizmente houve quem o entendesse) é multiplicar os contactos entre alunos e professores. Se não der resultado, servirá, pelo menos, para melhorar e aumentar as oportunidades de aqueles baterem nestes – fora do tempo de aula, está bem de ver, para não prejudicar o ensino.

Lendo todo este arrazoado, alguém dirá, criticamente: “Pois, pois! Ele está a defender a sua classe!”. A quem o diga, respondo (ou repito, já nem sei bem) que nunca na minha vida fui professor, nem perto disso. Acrescento que estou muito consciente de que muitos, muitos dos professores do nosso país se encontram na profissão errada (tal como muitos, muitos dos nossos actuais senhores ministros se encontram na função errada: adiante, não falemos de mais misérias. Jamé.).

No entanto continua a ser também verdade que há professores magníficos. Continua a ser verdade que o Ministério tomou uma decisão anticonstitucional, como declarada pelo respectivo Tribunal, que com essa decisão prejudicou vários alunos e que não parece nada preocupado com isso; continua a ser verdade que a tão falada TLEBS não passa de uma tontice inútil destinada a confundir o que deveria ser claro; continua a ser verdade que a concepção adoptada, não só nos exames como na prática do ensino, em relação à ortografia em particular e ao Português em geral, é um atentado contra a inteligência, contra a nossa língua e contra a nossa cultura, cometido por um departamento estatal chamado Ministério da Educação.

Vejo-me obrigado, a tal propósito, a recordar uma história já contada: aquela do professor de Física, dos tempos do antigamente (anteriores até, julgo, ao Estado Novo) que dava pontuação zero ao aluno que, num teste, escrevesse “trezentas gramas” em vez de “trezentos gramas”, porque, explicava, com inteira razão, trezentas gramas são trezentas plantazinhas que, juntas, formam um gramado. Temos aqui duas concepções opostas: uma, a da educação integrada, em que os professores do ramo científico querem e sabem corrigir erros de Português ou de História; outra, a actual, promotora da geral ignorância. em que não importa nada escrever que dôes e dôes são cuatro, o que é preciso é que a gentessentenda.

E a gente vai-se entendendo com um ou outro sopapo nos professores, sinal apenas de um certo espírito de iniciativa e de uma saudável energia física. Quem, no actual sistema, poderá pensar que isso é negativo?

Como diria o senhor ministro Mário Lino, Jamé.

sábado, 17 de maio de 2008

26.O esforço e o mérito

Conto-lhe...

O Marques e o Silva são dois carpinteiros que trabalham na mesma fábrica de móveis por medida. Uma quarta-feira o patrão chamou os dois e disse-lhes: «Preciso de entregar duas estantes deste Sábado a oito dias numa loja que vai abrir no centro comercial nesse fim-de-semana. Sei que o prazo é apertado, mas como fiz um bom negócio com o lojista estou disposto a dar um prémio a cada um de vocês se acabarem a obra no prazo acordado». E assim dito mandou-os trabalhar.

O Marques é trabalhador, não recua perante os desafios, aplica-se e esforça-se. O Silva tem um jeito especial, dizem que é dom de família, pois já o seu pai e avô tinham a mesma arte.

O Marques desde essa quarta-feira trabalhou a fio, com valentia e empenho, dia e noite, fim-de-semana, deu o melhor de si, o que tinha e o que não tinha, mas a estante era caprichosa e só conseguiu acabá-la dois dias depois da abertura da loja. Foi repreendido. Não teve prémio.

Ao Silva bastou-lhe a jorna diária, dispôs das noites e passou como de costume os fins-de-semana com a família. Para ele foi mais um trabalho de rotina, a correr de feição, sem exigência de qualquer esforço especial. No Sábado a estante estava pronta. Foi elogiado. Ganhou o prémio.

E o Zé escuta, estica as pernas, cruza os braços, inteira-se.

Segundo a lógica do custo-proveito nada a comentar, nada de extraordinário à face da terra e debaixo do sol. O Marques não conseguiu, não teve o mérito de acabar o trabalho a tempo, não teve prémio. O Silva conseguiu, teve o mérito de acabar o trabalho a tempo, teve prémio.

E a história, verídica, igual a milhares de histórias que vão acontecendo todos os dias por essas empresas fora, poderia acabar aqui, ou melhor, não chegaria sequer a ser história, se não estivesse errada e gravemente errada, e o erro é de análise e apreciação, por razão de uma subversão de valores em que se mudou a posição do homem de sujeito para objecto.

E o Zé insurge-se, descruza os braços, recolhe as pernas, chega o rabo para trás, arrazoa.

Marques e Silva não são os nomes de duas máquinas da fábrica de móveis por medida, são os nomes de duas pessoas deste planeta, deste mundo que nos sofre, feitos da mesma matéria e espírito que todos nós, e a tomada de consciência deste facto, porque por mais incrível que pareça é preciso acordar para a consciência deste facto, altera dramaticamente toda a análise e apreciação, endireita olhos e razão, obrigando a repor a justa ordem dos valores e posições, resgatando o homem de objecto para sujeito, e então, tudo passa a estar profundamente errado, porquanto Marques e Silva já não mais máquinas, mas pessoas e como estas e não como aquelas, deverão ser avaliadas.

O Marques esforçou-se muito, e para ele, que outra referência não se adequa, tudo o que podia, enquanto o Silva esforçou-se pouco, e para ele, que outra referência também não serve, nada do que podia. Foi premiado o resultado, não foi reconhecido o esforço.

E o Zé disserta, levanta-se, gesticula a compor as ideias, proclama…

Nesta cultura deformada que construímos contra o homem, paradoxo do homem, o mérito confunde-se com o resultado, o que não produz resultado não tem mérito. Houve uma substituição, diria melhor, uma alienação do mérito do esforço para o mérito do resultado. É consequência desta obsessão compulsiva, peste negra da modernidade, que viver é produzir, que é sempre preciso produzir alguma coisa, de material, de palpável, bem entendido, e que sem produzir não há vida… maior disparate do que este não é fácil enxergar. Mas não derivemos.

Os dois carpinteiros nasceram desiguais, e ainda bem se não seriam autómatos, e é essa desigualdade que lhes confere a cada um, personalidade única e irrepetível, e tinham e têm e terão sempre, características diferentes, características que nunca estiveram nem estarão nas suas mãos modificar. Os dons não se inventam, podem desenvolver-se, mas não se criam. Já o esforço sim, pode inventar-se, criar-se, está ao alcance de todos, depende exclusivamente da vontade.

… e vai daí, dá exemplo artístico.

Imagine-se, à laia de caricatura, que sendo eu patrão, da política ou da indústria, obrigava, ou desafiava, para ser menos drástico, todos os homens a compor a quinta sinfonia, ou a escrever os Lusíadas, ou a pintar a Mona Lisa, e isto no mesmo prazo. Tinha o mérito, para usar a palavra do dia, de ser internado.

E o Zé revolta-se, passeia pela sala, impugna.

O verdadeiro mérito está no esforço, não no resultado, mede-se pelo esforço, não pelo resultado. Mérito sem esforço, não é verdadeiro mérito. A medida do homem é o esforço, a medida da máquina é o resultado.

Os homens nascem todos desiguais, em características, e todos iguais, em direitos, sendo este segundo axioma de carácter normativo, isto é, postula como deveria ser, e não positivo, isto é, o que realmente ainda é, a verdade nua e crua da desigualdade dos direitos. Se eu avaliar todos os homens pela mesma bitola estou, ao contrário, a considerar que nasceram todos iguais e, portanto, e também ao contrário, a conferir-lhes direitos desiguais. Inverti tudo!

Quais são os indicadores de avaliação? São iguais para homens desiguais? Enquanto posso fazer as máquinas nascerem iguais para daí obter iguais resultados, não posso, nem fazer os homens nascerem iguais, nem tratá-los como se fossem iguais. Se o fizer deixo de os considerar sujeitos, mas objectos.

O que é que se deve premiar, aquilo com que nascemos e que não depende de nós modificar, ou aquilo que pela nossa liberdade e vontade somos capazes de transformar? O verdadeiro mérito estará no resultado obtido, ou no esforço que investimos para o obter?

O Zé escarnece, senta-se, vai para a política, casca forte.

É claro que a pensar assim entro em rota de colisão com o capitalismo, subverto o primado do capital sobre o trabalho, sou apóstata da cultura dominante economicista que reduz o homem a objecto numa equação contabilística de custo-proveito, mas ainda bem, porque como Eugène Ionesco disse «pensar contra o nosso tempo é um acto de heroísmo, mas dizê-lo é um acto de loucura». Sou então louco porque recuso a conversão do homem em mais um factor de produção.

Que vivemos numa ditadura económica, melhor dizendo, que vivemos numa ditadura, e esta correcção porque a economia é virtual, só lembrada e evocada como pretexto político do poder, é um facto, que mesmo os mais torcidos reconhecem, e que essa tirania, imposta e consentida, fizeram do homem um objecto, é facto maior.

Não se estimula e reconhece o mérito do esforço, incentiva-se, melhor, espicaça-se, o mérito do resultado, com ou sem esforço. O que interessa é sempre o resultado e isto é verdade nas empresas mas ainda mais verdade é na política. É já uma forma de pensar que ultrapassou a própria economia e deitou raízes na moral.

E o Zé alastra, mantém-se espraiado no sofá, vai da política para a cultura, lamenta-se

Por isso a meritocracia, nome bonito cheio de promessas, apesar das sedas com que se adorna é extremamente perigosa, porque se assentar exclusivamente no resultado e não no esforço vai claramente contra o homem. Por isso também todos os sistemas de prémios baseados unicamente nos resultados, não obstante poderem brilhar e ofuscar, qual fogo de artifício instantâneo, depressa se apagarão nas cinzas do desengano, dando pelo meio cabo do homem, das organizações e das comunidades.

Aculturámo-nos à cultura do mérito, mas a uma nova cultura do mérito, ou melhor dizendo, a uma cultura de um novo mérito, ou verdadeiramente falso mérito, porque desligado do esforço, e a este novo mérito, o mérito que vem de fora, do resultado, da conveniência, da posição ou situação, ligámos o prémio e mais uma cultura, a cultura do prémio. Mas onde ficou a verdadeira cultura, a cultura do homem? Tudo isto por imperativos economicistas. O homem vale pelo que produz e produz em quantidade, medível em alguma unidade de medida e espera-se, exige-se, a evolução e a evolução é produzir sempre mais, para ter mais mérito e arrecadar mais prémios, sejam materiais, sejam outros.

… e volta aos exemplos esmerados.

Aculturámo-nos a uma turquês gigante com dois tentáculos que comprimem o homem. Por cima um braço que se divide em dois, a economia, ou finanças, ou outra coisa mesma, é um, a competitividade, a rivalidade, eu tenho que fazer mais, ser maior, é outro. Por baixo um braço que imita em dois o primeiro, o consumismo e o supérfluo, é um, a vaidade e a leviandade, é outro. E a turquês aperta e o homem esborracha-se.

E o Zé remata, endireita-se, ergue o braço, desafia.

Se porém quisermos criar outra cultura, assente no homem, sem hipocrisia nem mentira, se quisermos construir outra civilização, para lucro do homem e não do capital, o que sempre teremos de fazer, mais tarde ou mais cedo, pela reforma ou pela revolução, então a conversa e a história seriam outras.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

25.Por onde anda a Democracia? Mário Crespo

Pronto! Finalmente descobrimos aquilo de que Portugal realmente precisa: uma nova frota de jactos executivos para transporte de governantes. Afinal, o que é preciso não são os 150 mil empregos que José Sócrates anda a tentar esgravatar nos desertos em que Portugal se vai transformando. Tão-pouco precisamos de leis claras que impeçam que propriedade pública transite directamente para o sector privado sem passar pela Partida no soturno jogo do Monopólio de pedintes e espoliadores em que Portugal se tornou. Não precisamos de nada disso. Precisamos, diz-nos o Presidente da República, de trocar de jactos porque aviões executivos "assim" como aqueles que temos já não há "nem na Europa nem em África". Cavaco Silva percebe, e obviamente gosta, de aviões executivos. Foi ele, quando chefiava o seu segundo governo, quem comprou com fundos comunitários a actual frota de Falcon em que os nossos governantes se deslocam.

Voei uma vez num jacto executivo. Em 1984 andei num avião presidencial em Moçambique. Samora Machel, em cuja capital se morria à fome, tinha, também, uma paixão por jactos privados que acabaria por lhe ser fatal. Quando morreu a bordo de um deles tinha três na sua frota. Um quadrimotor Ilyushin 62 de longo curso, versão presidencial, o malogrado Antonov-6, e um lindíssimo bimotor a jacto British Aerospace 800B, novinho em folha. Tive a sorte de ter sido nesse que voei com o então Ministro dos Estrangeiros Jaime Gama numa viagem entre Maputo e Cabora Bassa. Era uma aeronave fantástica. Um terço da cabina era uma magnífica casa de banho. O resto era de um requinte de decoração notável. Por exemplo, havia um pequeno armário onde se metia um assistente de bordo magro, muito esguio que, num prodígio de contorcionismo, fez surgir durante o voo minúsculos banquetes de tapas variadíssimas, com sandes de beluga e rolinhos de salmão fumado que deglutimos entre golinhos de Clicquot Ponsardin. Depois de nos mimar, como por magia, desaparecia no seu armário. Na altura fiz uma reportagem em que descrevi aquele luxo como "obsceno". Fiz nesse trabalho a comparação com Portugal, que estava numa craveira de desenvolvimento totalmente diferente da de Moçambique, e não tinha jactos executivos do Estado para servir governantes.

Nesta fase, metade dos rendimentos dos portugueses está a ser retida por impostos. Encerram-se maternidades, escolas e serviços de urgência. O Presidente da República inaugura unidades de saúde privadas de luxo e aproveita para reiterar um insuspeitado direito de todos os portugueses a um sistema público de saúde. Numa altura destas, comprar jactos executivos é tão obsceno como o foi nos dias de Samora Machel. Este irrealismo brutalizado com que os nossos governantes eleitos afrontam a carência em que vivemos ultraja quem no seu quotidiano comuta num transporte público apinhado, pela Segunda Circular ou Camarate, para lhe ver passar por cima um jacto executivo com governantes cujo dia a dia decorre a quilómetros das suas dificuldades, entre tapas de caviar e rolinhos de salmão. Claro que há alternativas que vão desde fretar aviões das companhias nacionais até, pura e simplesmente, cingirem-se aos voos regulares. Há governantes de países em muito melhores condições que o fazem por uma questão de pudor que a classe que dirige Portugal parece não ter.

Vi o majestático François Miterrand ir sempre a Washington na Air France. Não é uma questão de soberania ter o melhor jacto executivo do Mundo. É só falta de bom senso. E não venham com a história que é mesquinhez falar disto. É de um pato-bravismo intolerável exigir ao país mais sacrifícios para que os nossos governantes andem de jacto executivo. Nós granjearíamos muito mais respeito internacional chegando a cimeiras em voos de carreira do que a bordo de um qualquer prodígio tecnológico caríssimo para o qual todo o Mundo sabe que não temos dinheiro.

sábado, 10 de maio de 2008

24.Não mintam mais aos nossos filhos!

Meu caro Zé:

Fazendo minhas as suas palavras, “esta é a minha pequeníssima contribuição, mas já é alguma, para o movimento de indignação nacional”, venho enviar-lhe um texto do Miguel Mattos Chaves, que entendo da maior importância e oportunidade por estes finais de Abril. Antes disso, porém, gostaria de à laia de preâmbulo deixar duas notas.

A primeira refere-se à construção da História, não a dos factos genuínos realmente acontecidos, mas a da versão falseada que sobre eles se edificou. Como sabemos a história é dos vencedores e não dos vencidos, destes não reza a história, como é comum dizer-se, quer isto significar, que os vencedores materiais, de factu e com toda a probabilidade não de jure, forjam a contorção que mais lhes convém para justificarem a si próprios e ao mundo o porquê dos actos empreendidos, a qual versão passa a ser desde então a oficial. E quanto mais a vitória é imoral ou injusta, caso houvesse lugar a aplicar tão cândidos conceitos no contexto do poder e da força, maior é a mentira dos vencedores. Sempre foi assim e continuará a ser. Já na antiguidade dizia Breno, célebre caudilho gaulês que derrotou e saqueou Roma no ano de 390 a.C., vae victis! Ai dos vencidos!

É preciso que passe a geração dos vencedores e fazedores da História para que aos poucos e poucos a verdade aprisionada comece a libertar-se. Muitas vezes é necessária mais do que uma geração, tão enraizada na cultura oficial foi a mentira, e é sempre dramática a revelação da realidade porque fatalmente acabará por opor pais e filhos, os pais porque autores ou cúmplices de um legado falso, os filhos porque descobrem ser vítimas de um embuste.

Ora desta falsificação da História não se escaparam nem Portugal nem os portugueses no que se refere quer ao 25 de Abril, quer ao processo de descolonização. A história que nos tem sido contada pelos seus protagonistas e afins, geração ainda viva, está cheia de mentiras, pelas razões óbvias de tentar esconder a verdade sobre si próprios, de quem eram, e de justificar à luz de ideais não existentes, porque o fizeram.

Desta geração, há uns que viveram a História e conhecem a verdade, mas não têm assento, nem voz, há outros que também a viveram e torcem a verdade, por exclusivas razões de má consciência ou de outra forma perderiam respeito por si próprios, e há muitos outros que não sabendo minimamente do que falam, ou papagueiam o discurso disciplinado do politicamente correcto, ou ainda, por maior zelo de conveniência, mais inventam. Que os segundos tenham mentido a si próprios e à sua geração é grave, que os terceiros, meros fantoches daqueles, os imitem na mentira, continua a ser grave, mas agora que ambos mintam descaradamente aos seus filhos, isso já é intolerável.

O mal está feito, em muitos casos irreparável, o tempo não retrocede, a história é assim, não há uma história perfeita, os vencedores mentiram, esconderam-se na falsidade, não tiveram a coragem da verdade, foram cobardes, hoje poderão não ter ainda a bravura do arrependimento e da confissão, o homem é fraco, mas há uma coragem mínima que lhes é exigida, não mentirem mais aos seus e aos nossos filhos. Se não a tiveram para si que a tenham pelo menos para os seus filhos! Chega de história política, é tempo da verdadeira História.

Por tudo isto o texto do Miguel Mattos Chaves é uma lufada de ar fresco da verdade da história.

E termino aqui a primeira nota, longa, mas necessária.

Quanto à segunda é uma precaução que infelizmente se justifica na previsão da fuga de certos leitores facciosos, intelectualmente desonestos, que não tendo argumento que pese procuram desviar as atenções para o lugar comum dos rótulos ideológicos apressados. São estes os caciques que depauperados de toda a imaginação, enchem a boca das palavras, reaccionário, fachista, colonialista etc.

Mas desenganem-se tais enganadores, pois provavelmente sou na prática da vida mais apologista da autodeterminação dos povos, que outra coisa não poderia patrocinar em coerência com a defesa dos direitos humanos elementares de que me tenho constituído acérrimo combatente, do que muitos daqueles serão mesmo em teoria.

E por isso podem pois esses senhores abster-se dessas fabulações descabidas.

Está assim desfeita a previsível refutação porquanto não é nada disso que se trata mas de repor a verdade histórica das intenções e dos factos. Apresento, então, sem mais demoras o texto do Miguel Mattos Chaves.

Um abraço, António.

O MPLA já não tinha ninguém em armas, no terreno.
Miguel Mattos Chaves

A situação do MPLA no 25 de Abril era a de movimento político pois já não tinha guerrilheiros armados e organizados. Estava reduzido a quadros políticos, a maior parte dos quais fora de Angola, rodeados de mordomias e benesses.

Sou Português e envergonho-me do que se passou depois do 25 de Abril de 1974 em Angola. Até hoje mantive o silêncio sobre o que se passou em Angola, onde prestei Serviço Militar no período de 1973 a 1975. Mas hoje… após ver o que está abaixo escrito, em entrevista… não posso mais ficar calado.

Seria uma Traição à memória de centenas de milhares de civis e militares, negros e brancos, que morreram no período pós-25 de Abril de 1974, em Angola. Traição, tanto maior quanto o branqueamento que o entrevistado pretendeu fazer sobre o que aconteceu e branqueamento perante a real situação no terreno da Província de Angola.

Vamos a factos:

1 - Desde 1968 que não havia confrontos, dignos desse nome, na província entre as tropas portuguesas e os movimentos terroristas, depois ditos de libertação;

2 - O MPLA já não tinha ninguém em armas, no terreno. A situação do MPLA no 25 de Abril era a de movimento político pois já não tinha guerrilheiros armados e organizados. Estava reduzido a quadros políticos, a maior parte dos quais fora de Angola, rodeados de mordomias e benesses;

3 - Este movimento reorganizou-se por força das sucessivas traições cometidas após o 25 de Abril, patrocinadas por Oficiais Militares Portugueses do Quartel General que lhes forneceram equipamento e armamento e instrução. A sua base de recrutamento foi a população jovem dos Musseques de Luanda, principalmente.

4 - O oficial que mais responsabilidades teve no processo foi o Almirante Rosa Coutinho, pois foi na sua época que o MPLA conseguiu o apoio e a logística suficientes, para que conseguisse por volta de Julho/Agosto de 1975, "correr de Luanda" com os outros movimentos (FNLA e UNITA). O "Almirante Vermelho", mais o Pezarat Correia e outros que tais do QG, que deviam ter sido julgados pelo crime de Alta Traição à Pátria, foram quem patrocinou tudo aquilo que tive de aturar e tentar minorar, juntamente com os meus homens, na cidade de Luanda. Houve noites em que tivemos de acartar mortos dos Musseques para cima das Berliets. Tivemos que defender casas particulares, de escoltar civis até ao aeroporto... etc...etc...

5 - Andei em patrulhamentos com os 3 Movimentos, falei com os seus soldados e oficiais, e sei do que falo!

6 - Dos 3 movimentos: O MPLA - era constituído por soldados e oficiais recrutados à pressa nos Musseques e armados pelos ditos Oficiais do QG (dito português); Mal sabiam pegar nas armas e disciplina… nem sabiam o que era; O FNLA - era constituído por soldados Catangueses, que falavam correctamente o Francês. Alguns…digo bem, alguns, dos oficiais sabiam falar português; A UNITA - era constituída por soldados e oficiais disciplinados e com uma hierarquia copiada das nossas forças armadas.

7 - Repito, andei com os TRÊS Movimentos nas viaturas que eu comandava, em acções de patrulhamento em Luanda.

8 - O Dr. Jonas Savimbi tinha sido convidado em 1973 para Governador da Província de Sá da Bandeira pelo Governo chefiado pelo Prof. Doutor Marcelo Caetano. Não aceitou pois preferia ser Secretário Provincial numa de duas pastas: Justiça ou Educação. A UNITA fazia de tampão e colaborava com as forças armadas portuguesas, face a tentativas de infiltração da FNLA.

9 - O FNLA tinha dois BI-GRUPOS, no território. A base do Canacassala, ao pé de Nambuangongo, estava de há muito abandonada e desactivada (desde 1970, segundo informações dos homens da JAEA e de outros homens no terreno (não identifico pois não confio no entrevistado e não sei se estes estão ainda vivos);

10 - Estatísticas da Região Militar de Angola: 80% dos mortos entre 1961 e 1975 foram desastres de viação; apenas 20% foram mortos em combate. Sucede que só tinham direito a pensão de sobrevivência as famílias dos militares mortos em combate. Logo para não prejudicar as famílias eram os relatórios fechados com a aposição de morto em combate. No meu próprio Batalhão tivemos 8 mortos. TODOS em desastres de viação. No relatório: mortos em combate... A GUERRA em ANGOLA TINHA ACABADO.

11 - Vamos agora ao movimento dos capitães de que V.Exª devia TER VERGONHA de ter pertencido: 3 reivindicações dão origem ao Movimento dos pretensos "libertadores":

(A) Melhores salários a pagar a quem estivesse em Z.O. a 100% (Zona Operacional mais perigosa)

(B) Reequipamento em material de guerra e viaturas, das tropas em missão de soberania (citei)

(C) Que os Oficiais do Quadro de Complemento (MILICIANOS como eu) não tivessem acesso à carreira de Oficial do Quadro Permanente.

E foram estes os "NOBRES" motivos do Movimento dos mentecaptos que deram cabo de Portugal, de Angola, de Moçambique da Guiné, etc… e que são os responsáveis por milhares de mortes nas ex-províncias ultramarinas; são os responsáveis por milhares de famílias que ficaram sem os seus haveres; são os responsáveis por 800.000 portugueses, negros e brancos, terem de fugir das suas casas e se virem espoliados dos seus bens; são os responsáveis por milhares de soldados negros, que serviram sob a sua bandeira: a Portuguesa, terem sido fuzilados após a independência desses territórios, após a fuga dos "Libertadores"; são os responsáveis pelo abandono de Timor e pelo genocídio que em seguida se deu no território, etc... etc... Por muito menos teriam sido (por exemplo nos EUA), julgados e condenados à morte, por conivência em Genocídios ou pelo crime de Alta Traição. E foram em Junho de 1972 para o Terreiro do Paço em manifestação fardada, aproveitando as fraquezas e hesitações do Prof Marcelo Caetano; Fraca figura. Fracos dirigentes…fazem fraca… a forte gente. E, mais uma vez na nossa história, assim foi!

12 - Como essas reivindicações não podiam ser todas satisfeitas de repente, e como não lhes foi dada atenção face ao impedir os Oficiais Milicianos de acederem ao Quadro Permanente, começaram a conspirar e desabaram no 25 de Abril. Reivindicação mais corporativa que esta não conheço.

13 - A partir de 1973 são manipulados (esses inteligentes capitães e seus idiotas superiores aliados) pelo PCP. Depois foi o que se viu… Pensavam que sabiam… os coitados...

14 - O Episódio da Vila Alice! Senhor não diga asneiras! Aliás todo o seu depoimento é vergonhoso, bem digno dos "inteligentes do 25 de Abril". O Alferes da Polícia Militar, O Furriel da Polícia Militar e os dois soldados da viatura, foram aprisionados pelos esbirros do MPLA, só possível pela conivência da desordem reinante em Luanda e pela cumplicidade activa dos Oficiais do Quartel General. De imediato o Batalhão de Comandos (estacionado no Grafanil) teve conhecimento, e dois outros batalhões de infantaria, entre os quais o meu, se mobilizaram por ordem dos seus comandantes, que... NÃO alinhavam com os MFosos (os do MFA). De imediato se montou uma operação coordenada de cerco à Vila Alice (para os que não sabem a Vila Alice era o Quartel General do MPLA) - (SEM O CONHECIMENTO DO QG português) - (Está tudo documentado pela TVE, pois os documentos portugueses já devem ter desaparecido) e o Oficial, o Furriel e os Soldados foram resgatados (o Alferes com ferimentos numa perna e num braço foi levado para o HMP de Luanda, onde foi tratado).

15 - Foram mortos 27 homens do MPLA. O resto foi preso "à chapada". Foram desarmados e aprisionados pelas forças portuguesas no terreno (das quais eu, COM MUITA HONRA, fazia parte ... PERCEBEU?).

16 - Comentário do Jornalista da TVE: como é que os Oficiais Portugueses dizem que perderam a Guerra em Angola, depois do que aconteceu hoje? Sem comentários...

17 - Os Comandantes e restantes Militares do MPLA foram soltos por pressões dos Altos Comandos do Q.G. Senão... teria acabado ali o MPLA. PERCEBEU?

Peço desculpa do tom agressivo com que escrevi estas linhas. Mas estou farto de mentiras acerca de coisas e factos em que participei activamente. Estou FARTO DE PESSOAS QUE TRAÍRAM A FARDA DAS FORÇAS ARMADAS e A BANDEIRA de PORTUGAL. Não revelo Nomes de pessoas, pois não sei se ainda estão vivas. E com gente desta, MENTIROSA, VINGATIVA, nunca se sabe.

Por mim não tenho medo. O meu nome é Miguel Mattos Chaves, sou Português e envergonho-me do que se passou depois do 25 de Abril de 1974 em Angola. Por isso tenho estado calado. Mas se calhar está na hora de falar mais e denunciar os Traidores, Cobardes e Mentirosos. Se calhar está na hora de divulgar os nomes dos traidores… Bem hajam por acolherem este meu desabafo. ESTOU a ficar FARTO de ESTAR CALADO...


Estava de pé, e ela sentada, contava-lhe factos políticos históricos, e ela jovem, vinte e poucos, cara expressiva, modos despachados, esperta mas pura, resposta pronta nem sempre pensada, fitava-me presa e desconcertada, eram tantas as surpresas sobre o que lhe tinham dito e falado, olhos vivos, arregalados, e interrompia-me como já o fizera amiúde e de seu modo impulsivo e dizia-me «já há tantas associações por isto e por aquilo, porque não criar uma Associação para a Defesa da História?» e interrompi-me, agora eu, suspenso naquela ideia original, que nunca me atravessara, tão oportuna e necessária para este país, para esta geração e neste tempo, revirei-a, meditei-a por instantes e como quem lhe passa pelas mãos uma causa que não pode segurar respondi-lhe: «realmente é uma excelente ideia, mas eu já tenho tanta coisa que não posso, pode ser que alguém se lembre e eu adiro».

Chama-se Raquel. São estes filhos que um dia haverão de repor a verdade.

sábado, 3 de maio de 2008

23.Democracia portuguesa é das piores da Europa - João Pedro Henriques

A qualidade da democracia portuguesa está longe de ser comparar às melhores democracias europeias. Ao invés, encontra-se bastante abaixo da média, situando-se ao nível de países como a Lituânia e a Letónia, e só acima da Polónia e da Bulgária.

As conclusões são da Demos, uma organização não governamental (ONG) britânica que tem por principal objectivo "pôr a ideia democrática em prática" através, por exemplo, de estudos. A Demos divulgou no final de Janeiro um "top" de avaliação da qualidade democrática em 25 países da UE denominado "Everyday democracy index" (EDI, cuja tradução possível será "index da democracia quotidiana"). Trata-se de uma avaliação sofisticada que envolve mais itens do que o normal em avaliações deste género. O escrutínio não se fica pelos aspectos formais da democracia (eleições regulares, por exemplo). Vai mais longe, avaliando o empenho popular na solução democrática dos seus problemas e, por exemplo, a qualidade da democracia dentro das relações familiares. (…)

No EDI, Portugal está em 21º lugar, ficando apenas à frente da Lituânia, da Polónia, da Roménia e da Bulgária. Vários países que até há poucos anos orbitavam no império soviético encontram-se melhores classificados, segundo este "top".

O que se passa então com Portugal? Olhando para o gráfico, percebe-se a resposta: de um ponto de um ponto de vista da democracia formal, Portugal fica em 14º lugar, acima de países como a Espanha ou a Grécia ou a Itália. O que puxa a democracia portuguesa para baixo são os outros critérios. Por exemplo: a participação. Aqui a posição portuguesa desce para 19º lugar. Ou seja, as instituições políticas formais estão pouco cercadas de associações cívicas que as escrutinem.

Um aspecto inovador do estudo da Demos é o que avalia também a "democracia familiar". Tenta perceber-se em que países há mais direitos para cada um escolher a estrutura familiar. Entre os 25 países analisados, Portugal ficou em 21º. (…) Os países protestantes tendem a ser mais abertos que os católicos.

Verificou-se, por outro lado, que não há uma relação directa entre a qualidade formal da democracia e a qualidade da democracia quotidiana, que é tanto aquela que se exerce numa assembleia de voto como aquela que se pratica na reunião familiar onde se decidem as férias do Verão.