sábado, 17 de maio de 2008

26.O esforço e o mérito

Conto-lhe...

O Marques e o Silva são dois carpinteiros que trabalham na mesma fábrica de móveis por medida. Uma quarta-feira o patrão chamou os dois e disse-lhes: «Preciso de entregar duas estantes deste Sábado a oito dias numa loja que vai abrir no centro comercial nesse fim-de-semana. Sei que o prazo é apertado, mas como fiz um bom negócio com o lojista estou disposto a dar um prémio a cada um de vocês se acabarem a obra no prazo acordado». E assim dito mandou-os trabalhar.

O Marques é trabalhador, não recua perante os desafios, aplica-se e esforça-se. O Silva tem um jeito especial, dizem que é dom de família, pois já o seu pai e avô tinham a mesma arte.

O Marques desde essa quarta-feira trabalhou a fio, com valentia e empenho, dia e noite, fim-de-semana, deu o melhor de si, o que tinha e o que não tinha, mas a estante era caprichosa e só conseguiu acabá-la dois dias depois da abertura da loja. Foi repreendido. Não teve prémio.

Ao Silva bastou-lhe a jorna diária, dispôs das noites e passou como de costume os fins-de-semana com a família. Para ele foi mais um trabalho de rotina, a correr de feição, sem exigência de qualquer esforço especial. No Sábado a estante estava pronta. Foi elogiado. Ganhou o prémio.

E o Zé escuta, estica as pernas, cruza os braços, inteira-se.

Segundo a lógica do custo-proveito nada a comentar, nada de extraordinário à face da terra e debaixo do sol. O Marques não conseguiu, não teve o mérito de acabar o trabalho a tempo, não teve prémio. O Silva conseguiu, teve o mérito de acabar o trabalho a tempo, teve prémio.

E a história, verídica, igual a milhares de histórias que vão acontecendo todos os dias por essas empresas fora, poderia acabar aqui, ou melhor, não chegaria sequer a ser história, se não estivesse errada e gravemente errada, e o erro é de análise e apreciação, por razão de uma subversão de valores em que se mudou a posição do homem de sujeito para objecto.

E o Zé insurge-se, descruza os braços, recolhe as pernas, chega o rabo para trás, arrazoa.

Marques e Silva não são os nomes de duas máquinas da fábrica de móveis por medida, são os nomes de duas pessoas deste planeta, deste mundo que nos sofre, feitos da mesma matéria e espírito que todos nós, e a tomada de consciência deste facto, porque por mais incrível que pareça é preciso acordar para a consciência deste facto, altera dramaticamente toda a análise e apreciação, endireita olhos e razão, obrigando a repor a justa ordem dos valores e posições, resgatando o homem de objecto para sujeito, e então, tudo passa a estar profundamente errado, porquanto Marques e Silva já não mais máquinas, mas pessoas e como estas e não como aquelas, deverão ser avaliadas.

O Marques esforçou-se muito, e para ele, que outra referência não se adequa, tudo o que podia, enquanto o Silva esforçou-se pouco, e para ele, que outra referência também não serve, nada do que podia. Foi premiado o resultado, não foi reconhecido o esforço.

E o Zé disserta, levanta-se, gesticula a compor as ideias, proclama…

Nesta cultura deformada que construímos contra o homem, paradoxo do homem, o mérito confunde-se com o resultado, o que não produz resultado não tem mérito. Houve uma substituição, diria melhor, uma alienação do mérito do esforço para o mérito do resultado. É consequência desta obsessão compulsiva, peste negra da modernidade, que viver é produzir, que é sempre preciso produzir alguma coisa, de material, de palpável, bem entendido, e que sem produzir não há vida… maior disparate do que este não é fácil enxergar. Mas não derivemos.

Os dois carpinteiros nasceram desiguais, e ainda bem se não seriam autómatos, e é essa desigualdade que lhes confere a cada um, personalidade única e irrepetível, e tinham e têm e terão sempre, características diferentes, características que nunca estiveram nem estarão nas suas mãos modificar. Os dons não se inventam, podem desenvolver-se, mas não se criam. Já o esforço sim, pode inventar-se, criar-se, está ao alcance de todos, depende exclusivamente da vontade.

… e vai daí, dá exemplo artístico.

Imagine-se, à laia de caricatura, que sendo eu patrão, da política ou da indústria, obrigava, ou desafiava, para ser menos drástico, todos os homens a compor a quinta sinfonia, ou a escrever os Lusíadas, ou a pintar a Mona Lisa, e isto no mesmo prazo. Tinha o mérito, para usar a palavra do dia, de ser internado.

E o Zé revolta-se, passeia pela sala, impugna.

O verdadeiro mérito está no esforço, não no resultado, mede-se pelo esforço, não pelo resultado. Mérito sem esforço, não é verdadeiro mérito. A medida do homem é o esforço, a medida da máquina é o resultado.

Os homens nascem todos desiguais, em características, e todos iguais, em direitos, sendo este segundo axioma de carácter normativo, isto é, postula como deveria ser, e não positivo, isto é, o que realmente ainda é, a verdade nua e crua da desigualdade dos direitos. Se eu avaliar todos os homens pela mesma bitola estou, ao contrário, a considerar que nasceram todos iguais e, portanto, e também ao contrário, a conferir-lhes direitos desiguais. Inverti tudo!

Quais são os indicadores de avaliação? São iguais para homens desiguais? Enquanto posso fazer as máquinas nascerem iguais para daí obter iguais resultados, não posso, nem fazer os homens nascerem iguais, nem tratá-los como se fossem iguais. Se o fizer deixo de os considerar sujeitos, mas objectos.

O que é que se deve premiar, aquilo com que nascemos e que não depende de nós modificar, ou aquilo que pela nossa liberdade e vontade somos capazes de transformar? O verdadeiro mérito estará no resultado obtido, ou no esforço que investimos para o obter?

O Zé escarnece, senta-se, vai para a política, casca forte.

É claro que a pensar assim entro em rota de colisão com o capitalismo, subverto o primado do capital sobre o trabalho, sou apóstata da cultura dominante economicista que reduz o homem a objecto numa equação contabilística de custo-proveito, mas ainda bem, porque como Eugène Ionesco disse «pensar contra o nosso tempo é um acto de heroísmo, mas dizê-lo é um acto de loucura». Sou então louco porque recuso a conversão do homem em mais um factor de produção.

Que vivemos numa ditadura económica, melhor dizendo, que vivemos numa ditadura, e esta correcção porque a economia é virtual, só lembrada e evocada como pretexto político do poder, é um facto, que mesmo os mais torcidos reconhecem, e que essa tirania, imposta e consentida, fizeram do homem um objecto, é facto maior.

Não se estimula e reconhece o mérito do esforço, incentiva-se, melhor, espicaça-se, o mérito do resultado, com ou sem esforço. O que interessa é sempre o resultado e isto é verdade nas empresas mas ainda mais verdade é na política. É já uma forma de pensar que ultrapassou a própria economia e deitou raízes na moral.

E o Zé alastra, mantém-se espraiado no sofá, vai da política para a cultura, lamenta-se

Por isso a meritocracia, nome bonito cheio de promessas, apesar das sedas com que se adorna é extremamente perigosa, porque se assentar exclusivamente no resultado e não no esforço vai claramente contra o homem. Por isso também todos os sistemas de prémios baseados unicamente nos resultados, não obstante poderem brilhar e ofuscar, qual fogo de artifício instantâneo, depressa se apagarão nas cinzas do desengano, dando pelo meio cabo do homem, das organizações e das comunidades.

Aculturámo-nos à cultura do mérito, mas a uma nova cultura do mérito, ou melhor dizendo, a uma cultura de um novo mérito, ou verdadeiramente falso mérito, porque desligado do esforço, e a este novo mérito, o mérito que vem de fora, do resultado, da conveniência, da posição ou situação, ligámos o prémio e mais uma cultura, a cultura do prémio. Mas onde ficou a verdadeira cultura, a cultura do homem? Tudo isto por imperativos economicistas. O homem vale pelo que produz e produz em quantidade, medível em alguma unidade de medida e espera-se, exige-se, a evolução e a evolução é produzir sempre mais, para ter mais mérito e arrecadar mais prémios, sejam materiais, sejam outros.

… e volta aos exemplos esmerados.

Aculturámo-nos a uma turquês gigante com dois tentáculos que comprimem o homem. Por cima um braço que se divide em dois, a economia, ou finanças, ou outra coisa mesma, é um, a competitividade, a rivalidade, eu tenho que fazer mais, ser maior, é outro. Por baixo um braço que imita em dois o primeiro, o consumismo e o supérfluo, é um, a vaidade e a leviandade, é outro. E a turquês aperta e o homem esborracha-se.

E o Zé remata, endireita-se, ergue o braço, desafia.

Se porém quisermos criar outra cultura, assente no homem, sem hipocrisia nem mentira, se quisermos construir outra civilização, para lucro do homem e não do capital, o que sempre teremos de fazer, mais tarde ou mais cedo, pela reforma ou pela revolução, então a conversa e a história seriam outras.