sábado, 31 de maio de 2008

30.O senhor Nunes

O senhor Nunes tira, num gesto vagaroso, quase elegante, os óculos, se os tiver, não sei se os tem, mas nesta sua congeminação haveria de os tirar, em sinal de reflexão aguçada, e chegar-se para trás, encostando bem a espinha às costas do cadeirão, que isso a ambos há-de ter, espinha e cadeirão, e nesta sua congeminação há-de estar sentado, e olha o tecto no aprofundamento do raciocínio, e por tique, que é capaz de o ter, finge coçar o cocuruto da cabeça como a estimular o avanço célere dos neurónios idiotas, aqueles que produzem ideias sublimes.

Precisa de trepar a ministro e tem que ver como, ou outra ambição, ou compulsão freudiana de provar, alguma coisa a alguém.

E neste esforçado exercício do intelecto lembra-se da moda da gestão por objectivos que por estes tempos de brilhantismo na governação perpassa pelos espíritos políticos mais iluminados do país e exclama, «é isso!» e uma lâmpada acende-se, e um esgar, uma satisfação inebria-o pela descoberta genial, e agora, não vagarosa mas desenvoltamente, enfia os óculos, se os tiver, chega o rabo para a frente no cadeirão, que os tem, e excitado tecla no computador, faz assim um género de estatística preventiva.

Ora se mandar que se descubram tantas infracções, isso corresponde a tantos processos de contra-ordenação, o que equivale a tantas coimas e mais ou menos a tantos processos crime, o que significa fechar tantos estabelecimentos, o que vem a dar meter na prisão tantos criminosos.

O senhor Nunes é primeiro António, António Nunes, inspector-geral da ASAE - Autoridade para a Segurança Alimentar e Económica, instituição recente, criada ao que parece por imperativo da Comunidade Europeia e o dito senhor Nunes faz a propósito questão de deixar bem claro e por isso proclama sem inibição ou gaguez: "A orientação global é dada pela direcção da casa, é unipessoal, sou eu que a dou".

A Asae depressa ganhou fama e proveito pela forma dinâmica e extremosa com que aplicou a nova lei. Os seus funcionários, briosos e viris, de farda e pistola à cinta, passaram a ser notícia constante dos telejornais, irrompendo de surpresa pelos restaurantes e afins, casas de pasto e sucedâneas, tascas, tabernas, baiucas, boticas e o que mais, no cumprimento escrupuloso do seu dever, lançando o pânico em certos e nefastos antros, fazendo correr, fugir e dispersar, hordes de malfeitores, uns ainda caçados e enjaulados, que impunemente envenenavam as populações ingénuas e indefesas.

O senhor Nunes suspende-se na conclusão do seu cálculo, mira-o e admira-o, acha porém o número de prisões ainda baixo para tanta malandragem que sabe existir, que o povo tem esta inclinação prevaricadora e é preciso andar sempre em cima dele e com um pé atrás, e por número tão escasso a sua competência não há-de impressionar, e retoma a partir de cima a descida encadeada dos números para lograr encarceramentos mais significativos. Rejubila-o a estatística conseguida, antes de o ser já o é, proporcional e harmoniosa, verosímil e convincente. «Mas isto tem que ser muito à socapa» previne-se, «não vá o diabo tecê-las, que anda para aí uma legião de fofoqueiros que só dizem mal e que só embaraçam a justiça» acrescenta.

Que o crime alimentar e económico existe, já ele o sabe de sobejo, o que é preciso é desmascará-lo e dar-lhe arrumo, expô-lo à luz do dia nos números que não mentem, e de certeza que sempre haverão mais casos do que aqueles que ele de antemão sentenciou, e caso não os haja deviam haver, e de passagem lembra-se, não sei a que propósito, de um ditado árabe que diz: «bate todos os dias na tua mulher, porque mesmo que não saibas porquê, ela há-de saber».

Ora se há uma polícia tem que haver um crime, assim já pensava a polícia política, porque senão para que é que era preciso a polícia? E agora que se criou a polícia não será dever desta criar o crime?

“Ao fim de toda a lógica, de todas as doutrinas, de todos os gestos, os mais puros, de todas as iniciativas as mais altas, de todos os ideais, de todas as realizações: a polícia”. (Vergílio Ferreira)

Realizado, quer dizer, com aquela sensação de cheiinho, que vem da consciência de uma inteligência superior e de um zelo exemplar, ambos ao serviço do Estado, o senhor Nunes levanta-se a desfrutar do sabor por inteiro do dever cumprido, chega-se à janela que abre de par em par numa largueza de movimento, antevendo a merecida recompensa, já se vê com toda a justiça no acto de posse do ministério, sob as palavras gratificantes do Presidente, «é destes homens que o país precisa para recuperar a confiança do povo nas instituições políticas», e da janela contempla o mundo as seus pés, e neste com especial devoção os restaurantes e afins, casas de pasto e sucedâneas, tascas, tabernas, baiucas, boticas e o que mais, e enche reconfortado os pulmões do fresco ar da manhã que a natureza indistintamente oferece a todos os nascidos.