quarta-feira, 18 de junho de 2008

35.Sofrimento mínimo

O homem não se cansa de descobrir coisa novas e ainda bem, foi para isso que foi feito, ou que se faz, razão e compreensão dão-lhe um estatuto ímpar na natureza, diria numa frase com pompa: a descoberta engrandece e enobrece o homem!

A ciência porém esclareceu recentemente que afinal o homem não é, a seu modo, ímpar, isto é, singular, na animalidade terrena, mas existe outro igualmente ímpar, a seu modo.

Há de facto um bicho que não tem cérebro, mas que apesar de tudo vive, que não tem sentidos, mas que apesar de tudo diferencia o verde dos campos do vermelho do sangue, ouve o chocalho distintamente da corneta, atrai-o o perfume da comadre, repudia o da burra, sente uma festa, mesmo que não reconheça se de amizade se de fingimento, ou uma mosca que o irrite e por isso a enxota, saboreia a contento a erva fresca, cospe sem engano o excremento, mas que e finalmente não tem dor! E isto é ímpar! Um animal sem dor e por isso sem cérebro, mas que apesar de tudo vive e ainda por cima tem todos os sentidos em ordem! Milagre!

É o touro, em tudo igual aos outros animais menos na dor! Único, inclusive contando com o humano, que bem sabe o que é doer!

Mas estou na dúvida, não sei se esta descoberta cabe melhor na ciência se na cultura, e ainda tenho outra, não sei se é maior o animal - aqui já emprego o termo no sentido pejorativo de besta – que espeta, se o espetado.

Se decidir a favor do que espeta perco todo o respeito por mim próprio, eu que me julgava homo sapiens, orgulho da criação e ou evolução, sou afinal uma coisa triste, uma bicheza inferior, se decidir a favor do que é espetado os biólogos haverão de dizer que sou um ignorante…

Quando publiquei no blog o manifesto do Silva Garcia contra as touradas o António reagiu, mal e depressa, por e-mail: «Discordo profundamente desse senhor! Tenho uma dúzia de bons argumentos a favor da tourada à portuguesa (sofrimento mínimo, bandarilhas de plástico…). Essa ideia pertence à doentia corrente “urbano-depressiva” contra o saudável ruralismo. É a cidade contra o Campo. Da próxima vez que falar contigo hei-de comparar a tourada ao futebol…»

Respondi-lhe logo: «e da próxima vez que estiver contigo hei-de perguntar-te, pois morro de aprender, o que é que tu entendes por sofrimento mínimo, e enquanto te pergunto vou-te torcendo uma orelha a princípio com moderação continuando mesmo depois de começares a berrar até fazer um bocadinho de sangue, sim porque tens de deitar umas gotinhas que sejam, senão não vale, ou então levo uma agulha e começo a picar-te ao princípio ao de leve continuando mesmo depois de começares a gritar até brotar o vermelhinho. Tens de me explicar o que é isso do sofrimento mínimo. Talvez tenhas uma régua, régua não que é muito arcaico, mas um sensor electrónico, que eu, ignaro, desconheça, para por nos touros e que eles possam accionar por vontade como quem diz «eh pá! não exageres que já estás a magoar!»

Deixei uma linha, que gosto de separar os assuntos, cada um à sua vez, e continuei: «e depois chamas-me urbano-depressivo, vou-te pedir explicações…, e a cidade contra o campo, eu que adoro o campo e detesto a cidade! Mas o que é que uma coisa tem a ver com outra? Então para gostar do campo é preciso gostar de touradas? Quando for para o campo tenho que me munir de espada, bandarilhas e capote e andar atrás dos touros a ferrá-los – devia ser bonito, escorregava na primeira bosta e lá me ía - senão sou mal visto, mal recebido, escorraçado, como um estranho, como um inimigo, melhor dizendo, como urbano-depressivo? Bom, se os teus onze argumentos restantes, apenas prometidos mas não entregues, são do mesmo quilate, devem seguramente constituir erudita enciclopédia».

Este é um daqueles assuntos de juízo tão óbvio que chega a ser difícil arguir, é um paradoxo, eu sei, mas quando a evidência é tão manifesta, tão visível e clara, mesmo descarada, não conseguimos perceber como é que o outro não vê, e perplexos dessa humana impossibilidade ficamos sem palavras.

Prefiro citar Victor Hugo: “Primeiro foi necessário civilizar o homem em relação ao próprio homem. Agora é necessário civilizar o homem em relação a natureza e aos animais."

E depois para além do sofrimento está em causa a dignidade do próprio homem. Mesmo a acreditar naquela descoberta científica de que o touro por não ter dor não tem cérebro, ficava por resolver o problema da dignidade, e não será a dignidade, mais ainda que a razão, o grande e distintivo atributo do homem e que lhe confere o estatuto de ser superior? Para mim parece-me elementar que o aviltamento gratuito do alheio trás por inerência o rebaixamento do próprio.

E poderá haver cultura sem dignidade? A cultura não é saber equações matemáticas de cor, fórmulas químicas na ponta da língua, latitudes ou longitudes e nem sequer a gramática de trás para a frente. A cultura é saber usar o conhecimento para a compreensão e a compreensão para a elevação do homem.

E o texto que tanto reboliço causou ao António e que eu subscrevo integralmente era este. (Ver: Crónica 17)

Depois deste texto seguia-se uma proposta de moção a favor da declaração municipal simbólica da Póvoa de Varzim como cidade anti-touradas.

Fui buscar o alfinete para não me esquecer. O facto de sermos amigos não significa que da próxima vez, como prometido, não o pique…