quarta-feira, 11 de junho de 2008

33.Não mintam mais aos nossos filhos! (2)

«Meu caro Zé», era a primeira linha e a primeira frase. Abrira com alguma perplexidade, confesso, essa carta imprevista que recebera do António, já que sempre nos correspondíamos por e-mail e por isso mesmo esta surpresa formal, quase preocupação, dada a parcimónia da comunicação.

Papel com marca de água, num cinzento quase branco, impecável, a feitio do autor, escrita à mão dum fôlego, sem rasuras, ou então ensaiado e passado com esmero para realçar a gravidade, continuava na terceira linha: «Fazendo minhas as tuas palavras “esta é a minha pequeníssima contribuição, mas já é alguma, para o movimento de indignação nacional”, venho, a propósito destes dias de fins de Abril em que as mentiras retornam dos buracos e saiem desbragadas, o que já vai sendo apanágio da terceira república, tecer, para memória futura, que tu é que és exímio em arquivos, umas considerações sobre o torcer mentecapto da história».

Mais aliviado, não havia prisão nem revolução na vida do António, sentei-me.

«A primeira refere-se à construção da História, não a dos factos genuínos realmente acontecidos, mas a da versão falseada que sobre eles o poder dominante edificou. Como sabemos a História é dos vencedores e não dos vencidos, destes não reza a história, como é comum dizer-se, quer isto significar que os vencedores materiais, de factu e com toda a probabilidade não de jure, forjam a contorção que mais lhes convém para justificarem a si próprios e ao mundo o porquê dos actos empreendidos, a qual versão passa a ser desde então a oficial. E quanto mais a vitória é imoral ou injusta, caso houvesse lugar para aplicar tão cândidos conceitos no contexto do poder e da força, maior é a mentira dos vencedores. Sempre foi assim e continuará a ser. Já na antiguidade dizia Breno, célebre caudilho gaulês que derrotou e saqueou Roma no ano de 390 a.C., vae victis! Ai dos vencidos! Ou nas palavras de Charles Percy Snow “ A história não tolera as derrotas”.

É preciso pois que passe a geração dos vencedores e fazedores da história para que aos poucos e poucos a verdade aprisionada comece a libertar-se. Muitas vezes é necessário mais do que uma geração, tão enraizada na cultura oficial foi a mentira, e é sempre dramática a revelação da realidade porque fatalmente acabará por opor pais e filhos, os pais porque autores ou cúmplices de um falso legado, os filhos porque descobrem ser vítimas de um embuste.

Ora desta falsificação da História não se escaparam nem Portugal nem os portugueses no que se refere quer ao 25 de Abril, quer ao processo de descolonização. A história que nos tem sido contada pelos seus protagonistas e afins, geração ainda viva, está cheia de mentiras, pelas razões óbvias de tentar esconder a verdade sobre si próprios, de quem eram, e de justificar à luz de ideais não existentes, porque o fizeram.

Desta geração, há uns que viveram a História e conhecem a verdade, mas não têm assento, nem voz, há outros que também a viveram e torcem a verdade, por exclusivas razões de má consciência ou de outra forma perderiam respeito por si próprios, e há muitos outros que não sabendo minimamente do que falam, ou papagueiam o discurso disciplinado do politicamente correcto, ou ainda, por maior zelo de conveniência, mais inventam. Que os segundos tenham mentido a si próprios e à sua geração é grave, que os terceiros, meros fantoches daqueles, os imitem na mentira, continua a ser grave, mas agora que ambos mintam descaradamente aos seus filhos, isso já é intolerável.

O mal está feito, em muitos casos irreparável, o tempo não retrocede, a História é assim, não há uma história perfeita, os vencedores mentiram, esconderam-se na falsidade, não tiveram a coragem da verdade, foram cobardes, hoje poderão não ter ainda a bravura do arrependimento e da confissão, o homem é fraco, mas há uma coragem mínima que lhes é exigida, não mentirem mais aos seus e aos nossos filhos. Se não a tiveram para si que a tenham pelo menos para os seus filhos! Chega de história política, é tempo da verdadeira História.

E eram estas as considerações que as reportagens e entrevistas de circunstância por esta época realizadas com figurinhas do passado presente me exigiram, e muitas reposições de verdade seriam necessárias, em tamanho bordel de falácias, para endireitar reescrever a História desde o 25 de Abril. Sabes do que falo e por isso não me estendo em ditos e desditos, por redundante e falta de pachorra, que só aos ignorantes aproveitariam».

Sim, de facto, para quem viveu a verdadeira História, como ele e como eu, não era preciso entrar no inventário infindável das contra-facções. Terminava e abraçava-me. Fiquei a pensar que a única justificação para a formalidade da carta era a de simbolicamente dar peso à gravidade da revolta. Mas haveria de tirar a limpo.

Mais abaixo tinha ainda um post scriptum que dizia:

«Para aqueles que no futuro lerem esta carta, escrita e enviada nos finais de Abril do ano de 2008 ao meu amigo Zé, deixo uma nota de precaução que infelizmente se justifica na previsão da fuga de certos leitores facciosos, intelectualmente desonestos, que não tendo argumento que contrarie a verdade, procuram desviar as atenções para o lugar comum dos rótulos ideológicos apressados e mais viciosos. São estes os caciques que, depauperados de toda a integridade e falhos de toda a imaginação, enchem a boca dos vocábulos, reaccionário, colonialista, fachista, etc. Mas desenganem-se tais enganadores, pois provavelmente, se não fosse a modéstia diria seguramente, sou na prática da vida mais apologista da autodeterminação dos povos e da verdadeira liberdade dos cidadãos, que outra coisa não poderia patrocinar em coerência com a defesa dos direitos humanos de que me tenho constituído acérrimo combatente, na rua e não no gabinete, do que muitos daqueles serão mesmo em teoria. E por isso podem pois esses senhores abster-se dessas fabulações descabidas e num rebate de valentia reflectirem sobre o espelho da consciência. Fica assim desfeita a previsível refutação da quinta coluna, porquanto não é nada disso que se trata mas de repor a verdade histórica das intenções e dos factos».