sábado, 23 de fevereiro de 2008

08.A justiça ao serviço do poder económico

“… a questão é ter padrinhos que desculpem o homicídio e mil cruzados para pôr na balança, nem é para outra coisa que a justiça a leva na mão. Castiguem-se lá os negros e os vilões para que não se perca o valor do exemplo, mas honre-se a gente de bem e de bens, não lhe exigindo que pague as dívidas contraídas, que renuncie à vingança, que emende o ódio, e, correndo os pleitos, por não se poderem evitar de todo, venham a rabulice, a trapaça, a apelação, a praxe, os ambages, para que vença tarde quem por justa justiça deveria vencer cedo, para que tarde perca quem deveria perder logo. É que, entretanto, vão-se mungindo as tetas do bom leite que é o dinheiro, requeijão precioso, supremo queijo, manjar de meirinho e solicitador, de advogado e inquiridor, de testemunha e julgador, se falta algum é porque o esqueceu o padre António Vieira e agora não lembra.” (José Saramago – Memorial do Convento)

Víramos antes um exemplo, a cavalgada do fisco sobre os 120.000, da apropriação abusiva pelo poder executivo da competência judicial, veremos agora o poder económico a corromper a justiça.

Promiscuidades há-as variadas. Aqui o estado de direito desequilibra a balança para os ricos, e nos ricos sobretudo para as grandes empresas em que a pessoa é um número e o tempo não faz mossa.

A justiça em Portugal depende do dinheiro que se tem ou da falta dele, do advogado, que custa, das taxas, que custam, das custas, que custam, das do Instituto de Gestão Financeira e de Infra-Estruturas da Justiça, das da Procuradoria, das da parte, das outras que hão-de vir mais e de surpresa, que aí se cumpre o estado fiscal, que o de direito não se realiza, não na dupla tributação mas na múltipla tributação, «já paguei por antecipação o serviço público!» dirá o contribuinte confiado, «paguei-o no IRS ou no IRC, nos directos e nos indirectos!», «sim, pagaste, mas agora sempre que precisares de mim, haverás de me pagar outra vez, que os outros não contam» responderá doutamente o desgoverno da nação, e depois das custas, que custam, do tempo que custa, de tudo o que pesa e aperta os pobres, leia-se em sentido amplo, os que vão de pobres a não ricos e que são muitos, digo, a maioria, o que aligeira e desaperta os ricos.

É uma justiça feita à medida do poder económico. Quem o tem, ao poder, tem a justiça, quem não o tem fica-se pelo atropelo.

A maior parte das acções dos pobres, falemos portanto dos não ricos, são de defesa e não de queixa ou ataque, não são para enriquecer, são para não empobrecer mais, mas com este sistema quem já tem pouco com menos fica e quem já tem muito com mais fica, o pobre vai ficando cada vez mais pobre e o rico vai ficando cada vez mais rico. É uma justiça injusta.

O advogado bom tem mais probabilidade de ganhar, mas é mais caro, e porque é que é bom? Porque usa uma lei especial? Mas a lei não é só uma e igual para todos? Então se é só uma e igual para todos como é que há advogados bons? Mistério complexo a reflectir e decifrar… Não direi que a lei escrita, o texto, os artigos não sejam os mesmos, mas direi que a lei no sentido mais amplo, da interpretação, da argumentação, da apreciação da valoração e do juízo, isto é, a lei instituição, é manifestamente diferente, podendo de facto ser especial de um caso para outro. Assim a lei não é por si, a lei faz-se depender, de quem? Do advogado bom! Assim também, e logo, tempo e dinheiro moldam a lei.

O governo porém reclama da minha crítica, pensou antes em ignorar-me com desprezo, «não sabe do que fala», depois achou por bem sair a terreiro e proclamar que há muito legislou sobre a igualdade do acesso à justiça, ou sobre o quase gratuito acesso ao direito.

De facto escreveu, gastou pessoas, tempo e recursos e pôs cá fora com despudor, impudência, desfaçatez, descaro, desvergonha, tudo sinónimos em redundância intencional o que chama de acesso ao direito. Ora vejamos…

Uma mãe sozinha com três filhos a seu cargo, marido e pai desaparecido, empregada numa fabriqueta e ganhando o ordenado mínimo nacional, por isso e por não conseguir fazer face às despesas da família beneficiando de apoio do banco alimentar contra a fome, é ludibriada numa compra a prestações, mobiliário que adquiriu para os filhos, e vê-se com um processo às costas instaurado pelo fornecedor do mesmo. Pergunta-me o que há-de fazer e digo-lhe para ir à Segurança Social requerer apoio judiciário. Lá vai ela, ingenuamente e mal aconselhada, culpa minha, igualmente ingénuo, que a fiz perder tempo, e obtém defraudada na sua esperança, qual cidadã escrava do despotismo do estado, enquanto eu fico de boca aberta, a seguinte sentença: «a senhora não tem direito a apoio judiciário porque o seu rendimento líquido é superior ao que a lei estabelece», note, quem não saiba destas coisas mesquinhas dos pobres, que a dita lei estipula um rendimento líquido máximo de 375€ mês para poder ter acesso ao direito. Ora, 375€ por mês com três filhos dá para quê? Segundo o pensamento do legislador para um adulto e três crianças viverem, sobejando ainda capital para contratar um advogado, não daqueles bons… e suportar todas as custas judiciais. O que é que se chama ao homem, aos homens, à instituição, às instituições que estiveram e estão por detrás desta lei? Não vou fazer comentários, nem dar respostas. O caso é de tal forma escandaloso que não precisa de patrono.

Portanto, é este o conceito que o governo tem da igualdade no acesso à justiça. O governo prevê o acesso ao direito não para os pobres mas para os miseráveis e para estes de que é que lhes serve o direito? O que é que aquela mãe, uma entre muitas, vai fazer a seguir? Onde pára o estado de direito para ela? Onde se escondeu a balança equilibrada da justiça?

Os intelectuais preocupam-se muito com a liberdade e fazem bem, mas pode haver liberdade sem pão?

Outros casos houve, outras mães, também pais, pediram-me ajuda e outro remédio não tive que mendigar o patrocínio probono de advogados conhecidos.

Há uma clara contradição na nossa democracia. Uma democracia política não pode existir sem uma democracia económica, não se pode pretender por uma lado aproximar as pessoas politicamente afastando-as economicamente. É um contra-senso de rupturas.

Gostaria de terminar invertendo o título com que comecei, da justiça ao serviço do poder económico para, do poder económico ao serviço da justiça. Poderia haver melhor consagração do capital que promover a justiça dos povos?

Medida 3

Que medida poderei propor que todo o bom senso não tenha já reclamado? Para que efectivamente, não teoricamente, haja igualdade no acesso á justiça, sem descriminação económica, pois a limitação do direito por razão económica é a contradição do próprio direito, que se quer daquela independente, é preciso que ambas as partes gozem à partida de igualdade de oportunidade, de defesa ou acusação, independentemente dos seus recursos e no caso da falta destes, por qualquer das partes, deverá o estado patrociná-los de modo a que a mesma não perca o direito de justiça e a sociedade se honre e dignifique a si própria, porque uma sociedade que aceita a desigualdade na justiça é uma sociedade que perdeu a alma.