sábado, 26 de abril de 2008

22.Três homens, uma indiferença, uma mentira e um voto

Zé decidiu votar em branco. Decisão reflectida e coerente. Qualquer outra opção fá-lo-ia perder o respeito por si próprio. Mas não foi fácil, para lá chegar e assim concluir e dispor, teve que vencer dois tenazes opositores, que do terceiro, o da revolução, aqui não nos detemos, cada um com seu magistério da verdade.

O primeiro foi o Segismundo, que para fazer jus ao nome, era chupado como se imagina, bigode prematuramente grisalho e o resto por esse caminho, que clamava: «eu cá, abstenho-me! Não pactuo com nenhum desses aldrabões!» Para ele a generalização simplista: «é político, logo aldrabão!» Segismundo cansara-se, eram muitos anos de desilusão engolida; já sofrera toda a democracia. Homem desenganado que se vivesse no tempo do grupo jantante a ele se reuniria com vénia, ou no Café Tavares ou no Hotel Bragança, e com ele haveria de partilhar o conceito: "Para um homem, o ser vencido ou derrotado na vida depende, não da realidade aparente a que chegou – mas do ideal íntimo a que aspirava".

O segundo foi o Inácio, sem particularidade física de realce que não fosse uma normalidade ressentida, quer dizer, tinha pena de no aspecto ser igual ao comum dos portugueses, sem fisionomia que destacasse, com excepção de uma careca precoce. Homem fiel às urnas, sempre de opinião preparada, tivesse ou não convicção que a escorasse, ora votando no partido social-democrático, ora votando no partido socialista, conforme o ar fosse e o vento soprasse, «de acordo com o que a situação impõe!» explicava doutamente, advogando para este estado de decepção que apesar de tudo reconhecia, o voto útil. Não é que concordasse com o partido que ia sufragar, mas justificava-se na presunção de atenuar a sua contradição: «do mal o menos». Inácio considerava-se um pragmático; homem de apurado sentido da realidade, a sua, está claro.

E assim eram os dois e o nosso Zé matutava. Ouvia-os com paciência e congeminava com prudência, à luz da inteligência e na distância da lucidez. Fazia este exercício de se colocar no lugar da História para daí ter maior visão e abrangência.

Para os três, e só nisso aparentemente se punham de acordo, votar por convicção em qualquer dos dois partidos susceptíveis de governo que se apresentavam às eleições nesse ano de 2009, relembre-se, psd ou ps, estava completamente fora de questão, seria, assim o confirmavam, a maior das incoerências imagináveis, atendendo, ora ao mal fazer, ora ao não fazer, à vez, ora tu, ora eu, sem reserva de arrependimento e nalguns casos de consciência, porque nem sabiam o que faziam, e da incúria com que ano após ano, rodando um sobre o outro, iam em cumplicidade promíscua levando o país na modorra da pasmaceira.

Para o Zé ainda lhe saía mais grave. Então não era que o bom povo apesar de passar os quatro anos de governo a dizer mal com causa e fundamento, revoltado e cheio de boas razões, na altura das eleições lá ia, como papalvo depressa esquecido, botar o papel no esquife? Não! Com ele, essas levianas falhas de memória nunca poderiam ocorrer sob pena de perder todo o respeito por si próprio.

Aproximemo-nos então dos três amigos, ouçamos o seu diálogo, penetremos no seu pensamento, aquilatando das suas razões e fundemos por fim, mas com virtude, a nossa sentença.

O Zé dizia ao Segismundo:

- A ti já te percebo. Pela abstenção das duas uma, ou rejeitas qualquer dos partidos ou repudias o regime.

E o Segismundo respondia:

- A última, a última, está claro, repúdio total e completo do regime. Não pactuo mais com esta cambada. Não vês que o regime caiu de podre? Continuar a votar é ser cúmplice da corrupção e da incompetência. Se todos se abstivessem seria a prova provada, da falência do sistema. Era o grito do povo, basta! E então teria que se inventar outro sistema, outro regime, que não o destes partidos sem ideologia em rotatividade permanente, cúmplice e promíscua. E rematava: «A abstenção é o voto verdadeiramente inteligente e consequente!»

E o Zé retorquia:

- A tua utopia, deixa-me que lhe chame assim, tem duas falhas sobre as quais o teu edifício retórico ruirá antes mesmo de ser erguido, isto é, a acontecer como dizes nunca aconteceria como esperas. Explico-me. A primeira falha no teu discurso é que nem toda a gente que se abstém o faz por intenção, mas muita há que o faz por indiferença, negligência, preguiça e todos os demais adjectivos do está-se marimbando, quer dizer, da abstenção não se pode inferir linearmente que se está contra o regime, o que já pode acontecer com o voto em branco, este sim, é completamente diferente, tem intenção clara, duma só leitura, única e inequívoca, como mais à frente e quando chegar a minha vez provarei pela lógica irrefutável da razão. A segunda falha que abriste tem a ver com a eficácia da abstenção, que é nenhuma, que é nula, uma vez que, e aqui entra de novo a tua utopia, a abstenção nunca será de cem por cento, pela simples razão de que, pelo menos os que já lá estão, bem aliciados no poder, sempre haverão de votar em si mesmos, para de lá não se despegarem, correndo tu o risco, com a inteligente e consequente abstenção, como lhe chamaste, de lhes dar de mão beijada a maioria absoluta. Em vez de os castigar ainda os premeias… Espera, deixa-me acabar. Imagina por exemplo que a abstenção era de noventa e cinco por cento, e tu eufórico e os políticos ralados, porque dos míseros cinco por cento sobrantes poderiam sacar uma maioria absoluta para governar. Vê por exemplo o que aconteceu em 2005. O partido das abstenções foi o partido maioritário com 34,98% de votos, seguido pelo partido socialista com 29,29%, no entanto este último governa com maioria absoluta, o que significa que em cada dez homens três impõem a sua vontade contra a de sete. É claro que um partido com uma maioria absoluta assim forjada nunca a deveria ter pois governa em tirania contra a maioria. Obviamente que não é uma democracia, é uma ditadura, não é a vontade da maioria que impera mas a da minoria que ordena, por obra e graça de uma aritmética anti-democrática engendrada por quem costurou o poder a seu feitio. É trágico mas é verdade; assim se funda o nosso sistema democrático sobre defeito gritante que lhe contradiz o seu espírito. Portanto, meu caro, quando te absténs favoreces a ditadura dos menos sobre os mais, servindo exclusivamente quem se serve do poder. Resumindo e acabo agora, fica provado que a abstenção, tal como as contas são feitas, melhor dizendo, desfeitas, é um regalo para os que lá estão, ou para os que querem para lá voltar, nada aproveitando às verdadeiras maiorias.

E o Segismundo convenceu-se.

E o Zé voltou-se para o Inácio e disse-lhe:

- Tu, meu caro, que te proclamas baluarte da democracia procedes como seu inimigo, não sei se pior ou melhor que o abstencionista, mas igualmente como ele dando azo a desastrosas consequências. Com o teu voto útil, útil para quem? fazes um péssimo serviço à democracia, na qual garantes continuar a acreditar e não fora eu saber-te honesto, só poderia duvidar, porque o voto útil na actual conjuntura, em que não são os opostos que se digladiam, mas os semelhantes que se cobiçam, perdoa-me que te diga, é de total irresponsabilidade, porquanto introduz no xadrez das vontades uma mentira política. A única coisa que com isso provocas, e como tu, todos os outros como tu, é a perpetuação em equívoco perpétuo, passe a redundância, do genuíno querer do povo. Ora, se tu próprio dizes que já não acreditas em nenhum partido, contrarias naquilo que fazes aquilo que anuncias, sob a desculpa esfarrapada, perdoa-me outra vez a acidez adjectiva, do mal menor, assim preceituando que sempre sobrevivamos nesse mal menor. E se quisermos ir mais longe, apelando à filosofia das coisas, arte pura descomprometida, a tua conduta ainda se torna mais grave pela subversão dos princípios da liberdade que estão na génese e subjacentes à própria ideia de democracia, pois serves-te dela para mentir e não para gritares a tua vontade, supostamente íntegra de verdade. No fundo usas a democracia não sendo democrata, usas a forma renegando o conteúdo, corrompendo-lhe o espírito. A democracia assim não é, não interessa, deixou de ser democracia para passar a ser mais um jogo de mentiras. Vale mais, mil vezes, que venha o mal maior, qual mal? qual maior? para a depuração definitiva, a catarse purificadora. Preferes a mentira comprometida, como se não fossem todas, à verdade regeneradora. Tu, e todos como tu, que defendem o voto útil, são uns empecilhos à mudança, permanecem na noite entravando a aurora, passam a vida a esconder e a esconder-se da realidade. Têm medo do primeiro amanhã de esperança. Desculpa o meu tom, mas a ideia abomina-me e insurjo-me contra o engano que ela em ti tece. Resumindo, tal como fiz com o Segismundo, e de seguida termino, fica provado que o voto útil é uma mentira pessoal e política, que não aclara mas confunde, que não deixa a verdade da vontade transparecer mas soterra-a, que não é leal, nem para ti, nem para os outros, nem para o regime, porque a todos engana. É para isto que serve a democracia?

E o Inácio convenceu-se.

Faltava agora o Zé fazer a apologética do voto em branco, tal como havia prometido.

Eram uma vez três homens, começou ele a desembrulhar uma metáfora, o primeiro chamava-se Segismundo e um dia ao avistar um edifício que caía de podre, deu a volta e passou ao largo, mais não fez; o segundo chamava-se Inácio e ao passar pelo mesmo sítio deu com o edifício podre e, não obstante, resolveu entrar. Mirou, cheirou, apalpou, e não se sabe que mais, dizendo por fim para si, «Isto de facto está a cair de podre e não tem ponta por onde se pegue, mas deixa-me cá pôr umas cordas por aqui e umas espetas por ali, mais umas travessas por acolá, e ainda é capaz de se aguentar uns tempitos mais». Assim fez e brioso da obra feita saiu para a rua e contemplou, mas o edifício detinha-se por fora na podridão, sem mudança que se enxergasse; o terceiro chamava-se Zé, também por lá andou, também viu e a entrar se aventurou, mas dando-se conta que as paredes já se deitavam sem encosto que lhes valesse, o tecto já desfalecia sem amparo que o sustentasse e o chão já se afundava sem escora que o agarrasse, concluiu que cordas, espetas ou travessas não eram cura mas mais esterqueira, em nada compunham mas tudo precipitavam e achou por bem, antes que o edifício ruísse em grande estouro e maior tragédia, apelar ao capataz para de obras urgentes tratar.

Ora, como bem se entende, o edifício podre é o regime, o Segismundo, o que se abstém, o Inácio, o que vota útil, o Zé o que vota em branco, o grande estouro e maior tragédia são a revolução e o capataz, o Presidente da República.

A abstenção é a inconsequência, qualquer que lhe seja o móbil, negligência ou repúdio, é anti-democrática, fica-se por fora do sistema, ignora-o de longe. Está podre? Deixa-o estar! O voto útil é a incongruência, sem liberdade e sem vontade, é anti-democrática, faz-se cúmplice da corrupção do sistema, deita-lhe cordas, espetas e travessas, apenas para lhe alongar a agonia.

Onde está neles a responsabilidade cívica? Onde está neles o respeito pelo concidadão e pela instituição democrática? Seguramente que em nenhum está, nem na abstenção, nem no voto útil, mas exclusivamente no voto em branco, e isto em três momentos e tantas razões que nele coincidem, pois quando voto em branco digo três coisas sem equívoco: Primeiro, que aceito o processo eleitoral e cumpro com as regras de jogo democrático, mesmo que repudie o regime, segundo, que recuso os partidos que se me propõem, e terceiro não deixo, apesar de tudo, de praticar um acto livre de vontade, sou verdadeiro no meu querer, sem mazela de hipocrisia, com a vantagem acrescida sobre a abstenção de o meu voto em branco contar para as contas, ao contrário daquela, e assim diminuir a probabilidade da falácia de uma hipotética maioria absoluta.

E o Zé disse e os outros convenceram-se.

Passaram-se umas semanas, vieram as eleições. O Segismundo absteve-se, não porque quisesse, mas porque logo por azar lhe calhou nesse dia uma comezaina fora de portas.

O Inácio votou útil, não porque quisesse, mas porque tinha que ser…

O Zé, recebido o papelucho, sem se arredar da mesa eleitoral para o vestíbulo improvisado no canto da sala de aulas da escola, e sem puxar de caneta para riscar qualquer quadrado, dobrou-o duas vezes e botou-o na ranhura. Tinha votado em branco.