sábado, 19 de abril de 2008

20.Memórias do fim

Estavas na padaria a tomar o pequeno-almoço, quando uma mãe sentou o filho de dois anos numa prateleira alta retirando-se de seguida para uma qualquer conversa lá fora; tu chegaste-te para o miúdo com medo que ele por um simples trejeito caísse de costas no chão de pedra e uma desgraça fosse, e quando ela voltou saíste de guarda e disseste-lhe para ter cuidado ao que respondeu «fui só ali e estava a ver» e era tudo mentira e já tinha dado para várias quedas e ambulâncias. E contaste-me que sentiste tristeza, lembras-te?

Recebias no teu escritório um pequeno empresário inquieto, estupefacto e revoltado, que cria processar o governo, o estado, ou quem fosse, por ter excluído do QREN todas as actividades ligadas à saúde, à acção social e aos idosos, enquanto por exemplo, o comércio de vídeos pornográficos, de bebidas alcoólicas, de sucata, etc., essas sim, já tinham cabimento… Explicavas, e ele boquiaberto, que o QREN - Quadro de Referência Estratégica Nacional – para os seis anos de 2007 a 2013, e de muitos milhões comunitários reflectia a alma do governo, e como tal tinha que ser coerente com o seu carácter e de acordo com este, saúde, acção social e idosos não mereciam atenção, não faziam parte da coluna dos activos. Ora porquê? Está bem de se ver, continuavas, ou porque a saúde não interessava, leia-se não lucrava, ou porque a acção social não aproveitava, leia-se regalava, ou porque os idosos não importavam, leia-se estorvo a mais. Aclaravas, e ele pasmado, que aquilo que já se sabia, tarde ou cedo se haveria de revelar, vir à tona, debalde a camuflagem demagógica, e este caso era um entre muitos, escandaloso mas não sozinho, revelador das reais intenções de quem governa, desmascarando a sua indiferença sobre quem é governado. «O meu amigo não sabia que o estado é administrado como se de uma má empresa se tratasse, exclusivamente para dar lucro e lucro custe o que custar e salve-se quem puder, e que o povo são os empregados espoliados dessa gestão selvagem? Não é um governo da nação, é um governo do negócio!» E ele ficava a olhar para ti em desassossego, aparvalhado, sem apaziguamento mas pior do que entrara, a congeminar sabe-se lá o quê de moscambilha, enquanto tu te gastavas a explicar a obviedade por muitos ainda desapercebida. Eram tempos de muita mentira dum lado, só possível pela muita ignorância do outro. E contaste-me que sentiste pena dele e de todos os outros como ele, lembras-te?

Olhavas ausente a rua da cadeira do café e vias a tromba do aspirador enroscar-se sem pudor na máquina caça níqueis. O primeiro esbirro viera sozinho, subira a rua com um carrinho de rodas que julgaste fosse de transportar caixotes, mas que afinal se tornara num glutão de moedas. Mais à frente já próximo do saque, juntara-se-lhe em compadrio um segundo capanga do xerife de Nottinghan, com a chave a correr do cinto e a enfiar no parquímetro por de baixo e as moedas a jorrarem pela gravidade e pela aspiração enchendo o saco do imposto vigésimo ou trigésimo, já lhes tinhas perdido a conta. Pensaste nos pobres homens que por terem farda julgavam praticar o bem. Pensaste no pobre povo que sob tão grande agravo brando se segurava, e pensaste no xerife, homem mau sem réstia de arrependimento. Sabias que tu e todos naquela rua a tinham pago, e que agora, os mesmos, a voltavam a pagar para só assim poder nela viver ou trabalhar. E contaste-me que sentiste revolta, lembras-te?

Compravas um jornal e dizias-me que o não fazias há décadas, o que achei um exagero, e acrescentavas que gostavas de andar informado e por isso tinhas o hábito de não te deixares informar. Fiquei a pensar o que é que querias dizer com isso e depois concluí, acho que bem, que a proximidade tira a lucidez, como quem fixa uma árvore e perde a floresta. Era isso que querias significar ironicamente denunciando a propaganda e a desinformação?

Dizias a rir que te tinham perguntado ser eras de esquerda, de direita ou do centro e que respondias que eras do peão… Não atingi na altura e continuo sem chegar, a não ser que quisesses, com o sem sentido da resposta, retribuir o sem sentido da pergunta. Seria?

Comentavas que receberas pela calada da noite um e-mail do fisco que te causara repugnância enquanto para outros seria uma virtude do simplex. "A DGCI disponibiliza no seu site da Internet (…) os anúncios dos bens penhorados que estão em venda, contendo a sua descrição, localização e o valor base para venda. Neste momento estão em venda mais de 1.500 bens, nomeadamente imóveis e veículos automóveis. Na última semana foram introduzidas no site importantes inovações que gostaria de lhe dar a conhecer (…)" E depois seguia-se a lenga lenga do negócio: já penhorei, agora tenho aqui para vender, quanto é que dás para comprar? E repugnância, dizias, feita de três nojos, primeiro, o da náusea da penhora, sabe-se lá de quem e em que condições, segundo, o do enjoo da devassa pública e terceiro, o asco pela eventual compra de quem se aproveita da desgraça alheia. E contaste-me que sentiste repulsa. Por essa altura achei-te dramático. Inclusive acrescentaste que ao receber o e-mail veio-te à memória uma cena daqueles filmes americanos passados nos princípios do século XIX onde num palanque se vendiam escravos. Por esse tempo não percebi a comparação, de resto devo confessar-te que a achei demasiado rebuscada. Só hoje compreendo a metáfora e infelizmente sou forçado a dar-te razão. Éramos escravos e ainda não tínhamos dado por isso.

Avisavas que nessa época já não batiam à porta de fato preto barato e gravata fininha, que para dar cabo de uma pessoa bastava difamá-la pelos jornais ou televisões, que essa era a ilusão da liberdade, ou que inventavam processos fiscais ou outros, que essa era a panaceia da justiça.

Andavas encantado com o Virgílio Ferreira e não te cansavas de o citar. Trazias um livro dele e lias-me passagens. Era a tua forma de suspender o dia. “Abre os olhos totalmente e vê. Aguenta o impacto da vida e vence-a. Recupera-a desde as raízes, obscura, lenta, verdadeira. E se ela é a tua invenção, esquece tudo, inventa-a desde o início, cospe na que te deram – de que é que serve? Ou estarás tu envenenado para sempre? Reconstruir tudo desde as origens, desde a primeira palavra. Tudo o quê? É necessário que tudo seja novo, inteiramente novo e imprevisível, que o passado morra em ti profundamente”.E dizias que estas palavras eram para cada homem mas sobretudo para o país, que Portugal era um Homem doente que precisava de ser reinventado. E por esses dias, quando nos despedíamos, lá me atiravas a frase de exortação do momento, evocando de novo Vergílio Ferreira: “… sê em ti esse princípio eterno que te vive”.

Ficaste triste com estas recordações? É natural, o tema era triste, se bem que poderias sempre ter voltado a cara, fazer de conta que não se passava nada, esconder-te fechado no teu universo comezinho, sublimares em distracções ou alienares em ilusões, como muitos o fizeram à espera que alguém lutasse por eles, então, já não era só o tema que seria de tristeza, tu próprio estarias abatido sem capacidade para reagir, mas não, deprimido é o sem causa, e tu com lucidez e coragem enfrentaste a realidade sem desculpas e declaraste: «que os outros vendo não queiram ver, sabendo não queiram fazer, não é justificação para a minha indiferença; posso pouco mas darei o que puder!» Tinhas tristeza, mas maior era a esperança, se não a tivesses não terias lutado contra o que pareciam ser moinhos de vento. E agora aqui sentados neste Portugal reinventado, sobre um governo íntegro e competente, fiel aos interesses do povo, és feliz, uma nova esperança te arde, não vinda do acaso mas reconstruída com o labor de cada dia dos que acreditaram, e estas memórias do fim do regime são uma lição antes de o ser.